Jorge Delgado: “Temos de conferir liberdade às pessoas”

Um cartão de transporte para as empresas e um bilhete único que permite circular entre áreas metropolitanas. Estas são duas medidas concretas que estão a ser desenhadas na Secretaria de Estado da Mobilidade Urbana e que visam incentivar o uso de transportes públicos, integrando-se numa estratégia em que a expansão do metro emerge como central, em Lisboa e Porto, e de que são igualmente eixos importantes a promoção da mobilidade ativa ciclável e pedonal. Em entrevista, o titular da pasta, Jorge Delgado, levanta o véu sobre as políticas e os propósitos.

O ecossistema da mobilidade é um tema de uma centralidade indiscutível. O que o torna incontornável na governação do País e das cidades?

De facto, os problemas da mobilidade ganharam uma centralidade enorme, nas últimas duas décadas, ao ponto de, hoje, o direito à mobilidade ser considerado uma espécie de direito fundamental. E ganharam essa centralidade por razões de diversa natureza, desde logo as que se relacionam com os problemas ambientais e com o facto de este setor ser responsável por 25% das emissões de gases com efeito de estufa. Mas, também por razões de natureza económica. A forma como nos movemos é muito ineficiente, desperdiçamos muito tempo, muita energia porque usamos modos que não são otimizados. E ainda por razões de justiça social, porque o direito à mobilidade permite criar maior igualdade de oportunidades.

Diria que, de uma forma genérica, o que precisamos é – e já referi algumas vezes esta citação do Gandhi – fazer mais, com menos, para mais. Por este conjunto vasto de razões que se interliga temos o ecossistema da mobilidade como um ponto central das políticas.

Como é que a política que está a ser desenhada responde a estas várias dimensões da mobilidade? E como se compaginam a sustentabilidade e a inclusão?

Como linhas gerais de atuação, estabelecemos os princípios que sustentam as políticas concretas em três grandes ideias, associadas ao acrónimo ASI – Avoid, Shift e Improve. O que significa, desde logo, que temos de evitar um conjunto de viagens que são perfeitamente desnecessárias. Se a pandemia teve alguma virtude, uma delas foi demonstrar que o teletrabalho é possível, em exclusivo ou complementar ao trabalho, e com isso evitamos um conjunto de viagens; e mostrar que muitas reuniões que se faziam presencialmente se podem fazer utilizando os media que estão ao nosso dispor, mais uma vez reduzindo as deslocações. Por outro lado, evidenciou a importância do desenho das cidades, de a forma como organizamos o planeamento urbano nas cidades evoluir para as cidades dos 15 minutos, em que estamos a uma walking distance, ou de bicicleta, do essencial do nosso dia a dia. É algo que começa a ser muito trabalhado e a influenciar os decisores.

Por outro lado, temos mesmo de transferir o modo como viajamos. Por razões que têm a ver com o aumento da capacidade económica das pessoas e com uma falsa imagem de estatuto social, o carro acabou por invadir as cidades de uma forma muito agressiva e muito intensa. Temos de fazer perceber que é preciso mudar os nossos hábitos, fazendo do transporte público a espinha dorsal. Mas, também, porque, sozinho, o transporte coletivo não será suficiente, promovendo outros modos de mobilidade. A mobilidade ativa – o andar a pé e o andar de bicicleta, que são as formas de nos movermos mais naturais, mais humanas – tem de recuperar um espaço que no passado já teve. Além disso, temos de criar condições para, quando o andar a pé, de bicicleta ou de transporte publico não é suficiente e precisamos mesmo de um veículo, fazer com que a mobilidade partilhada – os táxis e os TVDE – não seja um luxo, seja um instrumento ao serviço das necessidades.

É esta transformação a fazer. E temos de melhorar, nomeadamente a eficiência energética. Temos de descarbonizar os transportes públicos e o próprio carro individual, que não diabolizamos – tem é de reduzir a sua proeminência neste ecossistema e melhorar a eficiência, partindo para soluções “verdes”, as soluções elétricas ou as potenciais soluções de hidrogénio, que estão a evoluir.

Sendo um desafio complexo, é igualmente virtuoso, como já o disse. Porquê?

É um desafio virtuoso, porque o problema que queremos resolver é o problema da vida das pessoas, da qualidade de vida, da qualidade do ambiente. Por si só, essa transformação, embora tendo algum custo, tem essa virtude. Porque, de cada vez que saímos do carro e passamos a andar ou a usar o transporte público, estamos a contribuir para a nossa saúde. Mas, tem virtudes também do ponto de vista económico, porque conseguimos maior eficiência económica se mudarmos os padrões de mobilidade.

Já nos habituámos a olhar para as grandes cidades e para os acessos com aquelas filas de trânsito enormes, mas, se pensarmos bem, no século XXI, este cenário já deve causar um pouco de vergonha a todos nós. Há uma imagem que tenho passado, e que ouvi há uma dezena de anos numa conferência, e que é a seguinte: perante um slide em que se vê uma grande avenida cheia de carros e uma pessoa num dos carros, com a mão encostada ao queixo, desanimada, alguém questiona o que se está a ver – uma pessoa metida num sítio pequeno, isolada, sem poder sair dali. É um pouco a imagem do que é estar preso. Temos de conferir liberdade às pessoas, libertando-as desta amarra.

A mudança vai custar, porque implica investimento e uma alteração de hábitos, mas é virtuosa.

Sexta-feira, 17 Fevereiro 2023 16:27


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