Os desafios das mobilidades múltiplas e desiguais

O que tem a mobilidade a ver com o género? Na ótica da autora, a relação existe e começa no planeamento das cidades e da rede de transportes, que, afirma, tendem a perpetuar as desigualdades.

O novo paradigma das mobilidades tem origem na investigação de feministas, ao identificarem as diferentes experiências de deslocação entre mulheres e homens (derivadas dos papéis sociais que assumem) e as liberdades relativas e competências adquiridas (ou a falta delas) que as mulheres obtêm a partir da capacidade para se movimentarem na cidade ou nas deslocações para lugares distantes (Cresswell 2013; Faist 2013).

Criado pelo movimento moderno, o planeamento racional separou a residência do local de trabalho através das funções “viver–trabalhar–recrear–circular” (Carta de Atenas) que guiaram, até aos dias de hoje, as políticas urbanas. O alerta foi dado para a urgência da desconstrução da história dominante do planeamento urbano, resgatando do esquecimento mulheres às quais foi negada, ou silenciada, voz na construção das cidades (Greed 2011; Madariaga 2013; Muxí 2018; Lages 2020).

Suportado pela generalizada utilização do automóvel e do zonamento urbano, um uso do solo disperso foi surgindo e, consequentemente, as tarefas diárias ficaram dependentes de deslocações maioritariamente motorizadas. Ora, as mulheres continuam responsáveis pela globalidade das rotinas diárias (domésticas, de cuidado, entre outras) e ainda têm uma atividade profissional remunerada no mercado de trabalho. Em resultado, a sua cadeia de viagens é mais complexa do que o padrão (masculino) tradicional casa–trabalho utilizando preferentemente os transportes públicos e a caminhada. Dados recolhidos numa amostra de população residente na Área Metropolitana de Lisboa, em 2016, revelaram que a percentagem de deslocações semanais de automóvel é mais elevada nos homens (81%) em comparação com as mulheres (66%), enquanto elas usam mais o transporte público (30% mulheres e 16% homens) e modos ativos frequentemente (http://genmob.ceg.ulisboa.pt/). Estes dados refletem as estatísticas internacionais e estudos académicos.

Em resultado da funcionalidade espacial herdada do racionalismo, e dos papéis de género, as mulheres – e outras pessoas que não encaixam no modelo dominante – precisam de uma maior quantidade e qualidade de ofertas (Queirós & Costa 2020). Todavia, no séc. XXI, as políticas de transportes urbanos, na sua maioria, ainda se assumem como neutras e universais (na conceção e/ou na avaliação), sem perspetiva de género, muito em particular, no que respeita à finalidade e frequência das viagens, modos, distâncias percorridas, pontos de paragem e tempos associados (Queirós 2022). E quando o fazem, estas políticas parecem continuar a assumir que a maioria das mulheres se encontra na esfera doméstica e os homens na pública. 

Sendo supostamente lugares representados pelo acolhimento e de expressão das liberdades, as cidades são, na prática, reiteradamente agressivas para as mulheres e, não raras vezes, as tornam invisíveis, pois são desenhadas sem consideração pelas suas experiências e necessidades, revelando processos que sistematicamente obliteram as mulheres no planeamento urbano (Boccia 2016). Mais ainda, a crítica à cidade “do homem” quando considera outros marcadores sociais, como a classe, etnia, nacionalidade, idade, entre outros, torna estas inquietações mais desafiantes, mas muito necessárias à reflexão sobre a herança do racionalismo do século XX no planeamento urbano, a pertinência de quebrar o modelo socioespacial do passado, e a desconstrução dos papéis de género. O novo paradigma das mobilidades serve ainda para pensar nas práticas do planeamento da mobilidade e suas implicações para atenuar (ou acentuar) as desigualdades; embora destaque formas específicas de mobilidade espacial relacionada com as mulheres, será ainda tanto mais proveitoso quanto reflita criticamente sobre políticas públicas que superem as dicotomias entre setores (ex. transportes, habitação, urbanismo).

Terça-feira, 04 Abril 2023 08:03


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