Briefing | Quais são as suas prioridades como presidente da Confederação Europeia da Indústria de Calçado?
Luís Onofre | Estamos a chegar a uma fase complicada na indústria. Estamos perante uma tempestade de acontecimentos que não são nada favoráveis para o mundo da moda e temos de atuar da melhor forma e o mais rápido possível.
Uma questão prioritária são as taxas alfandegárias, que são totalmente díspares. Vamos tentar acertar baterias, eventualmente no Parlamento Europeu. A Europa está aberta a um comércio livre, o que não acontece noutros mercados importantes para nós, nomeadamente Brasil ou China – onde se, por exemplo, quiser colocar a minha marca tenho impostos quase acima dos 80%, quando eles aqui têm entre 10 e 20%. Portanto, as trocas comerciais não estão a ser justas.
Outra prioridade tem a ver com a sustentabilidade, com produzirmos de forma a sermos amigos do ambiente e com controlarmos as importações de calçado vindas de outros países, onde, muitas vezes, dizem que usam materiais ecológicos e não é bem assim. Não há o controlo que tem de haver sobre essa matéria.
Iremos também tentar que os designers pensem sempre em termos de sustentabilidade. Acho que essa vai ser a tarefa mais interessante para mim. Como designer, também é um desafio para mim. Desde 2009 que comecei a trabalhar em private label com os guest designers da H&M, para quem a sustentabilidade é crucial. Ensinaram-me muitas coisas e formas de produzir que eu nunca imaginaria que poderia fazer. Estou a fazê-las e realmente fazem a diferença.
Iremos também reforçar as escolas, no intuito de captar novos valores para a nossa indústria. A falta de mão de obra qualificada é um problema transversal a todos os países europeus produtores de calçado, nomeadamente Espanha e Itália.
As marcas europeias competem no mesmo mercado que as chinesas?
Sim, competimos no mesmo campeonato. Aliás, a China está a fazer coisas muito bem feitas. Talvez por culpa dos europeus, que demos o know-how precioso, centenário e histórico das nossas indústrias e agora estamos a pagar a fatura. E a fatura é cara.
De qualquer forma, há uma procura do produto europeu no sentido da procura de qualidade e de um design completamente diferente.
Será essa a nossa mais-valia. Itália produzia 500 milhões de pares e agora produz 100. Mas está a faturar mais, ou seja, o valor subiu bastante em relação ao passado. Talvez a qualidade e o nível de calçado também tenham subido bastante. A própria moda assim o exige. O sapato europeu roça quase o artístico. São feitas coisas incríveis, quase joias para os pés.
A diferença é, sobretudo, a nível de posicionamento?
Sim. Outro fator crucial é reforçarmos a indústria com gente capaz de lidar com o mercado online. Tudo mudou de repente e cada vez muda com maior frequência. Inclusivamente, tenho falado com pessoas ligadas ao têxtil e percebo que estamos todos sem saber muito bem o que isto vai dar. É muito complexo aquilo que se está a passar e a forma como teremos que agir para que os nossos produtos sejam mais vendáveis online. Tem que se gastar mesmo muito dinheiro. Uma loja online para trabalhar bem e estar bem posicionada obriga a uma logística brutal, é muito mais trabalhoso do que uma loja física.
Em relação às lojas físicas, tinha uma estratégia definida há alguns anos, de internacionalizar as lojas, que, neste momento, devido ao que se está a passar no comércio online, tenho de reformular. Tenho de pensar muito bem o que vou fazer. Estive há poucos meses em Nova Iorque e vi lojas históricas a fecharem na Madison Avenue e na Quinta Avenida. É o que se está a passar um pouco em todo o mundo, com lojas multimarca cada vez mais a fechar os seus negócios. É um bocado assustador.
Sou um defensor acérrimo do comércio tradicional. Para mim, é sempre muito mais enriquecedor as pessoas chegarem a uma loja e sentirem a emoção de terem o produto na mão. O online tira essa emoção. Agora é a mesma coisa em todos os locais, tornou-se muito massificado. Ir à Avenida da Liberdade é a mesma coisa que ir aos Campos Elísios.
E a moda pertence a alguns protagonistas, que são as supermarcas. E, depois, há outra vertente que nos faz alguma mossa, que são as lojas low cost, como a Zara e a Primark. Não gosto de lhes chamar cópias, mas fazem-nas bem feitas e têm coisas muito interessantes. Até me mete um bocado de impressão entrar na Zara e ver preços a que, para mim, só em materiais seria quase impossível chegar.
O mercado está muito complexo e complicado. As coisas mudaram de uma forma radical nestes últimos dois anos e ainda estamos a perceber o que vai acontecer e como é que o consumidor final vai reagir a toda esta mudança.
Que papel vai ter na defesa da indústria portuguesa enquanto presidente da confederação?
Vamos tentar proteger a nossa indústria ao máximo, tentar que a origem do produto seja obrigatória também no sapato, o que não acontece. Se vir uma sola de um sapato e não vir a origem já sabe que não é europeu. É algo que já está intrínseco, embora muitos dos nossos consumidores não o saibam, e, por vezes, estão a comprar uma marca a pensar que estão a comprar algo produzido na Europa e não é bem assim. Isso tem de ser bem clarificado, para que os consumidores não tenham dúvidas.
Portugal tem o segundo preço médio mais elevado entre os principais produtores mundiais. O que é que isso significa para o mercado?
Significa que, ao longo destes anos, tem-se vindo a afirmar como um país forte na produção de calçado de qualidade. Subimos muito o patamar e, talvez por isso, o preço seja agora talvez mais relevante nesse sentido. Por acaso, este foi um ano atípico e aconteceu o que já não acontecia há muito tempo: o setor do calçado em Portugal subiu em número de pares, mas desceu na faturação. Significa que o preço baixou, o que está em contraciclo.
Também o Brexit vai causar mudanças no mercado.
O Brexit está a causar muitos medos, muita instabilidade. Não estamos a saber como vamos lidar com o futuro. Não sabemos o que vai acontecer exatamente, tanto com o Brexit, como com a queda das economias alemã e francesa. E a Europa continua a ser o nosso maior destino de exportação, nomeadamente França. Inglaterra baixou muitíssimo e contribuiu para uma quebra de 3%, que, mediante as circunstâncias, já não foi má.
O caminho será expandir para novos mercados?
Sim. Estamos a apostar nos Estados Unidos, embora tenhamos sido apanhados de surpresa com estas novas leis protecionistas de Donald Trump. Também a China está a impor regras cada vez mais difíceis. São dois mercados em que queremos apostar, a par, por exemplo, do Japão.
O que é preciso fazer em termos de marketing?
Tudo mudou também, desde as imagens de campanha à publicidade em revistas. As redes sociais estão a ter um protagonismo brutal e os influencers são muito dispendiosos. Nem falo de uma Kardashian, mas pôr um post de uma marca qualquer custa um balúrdio. E são coisas muito rápidas, que passam e não ficam. Uma revista fica, há uma coisa física. O online é etéreo, desaparece. É isso que estamos a viver hoje em dia: uma informação quase ao minuto, em que as pessoas têm a vida na mão, no tablet. E isso mudou radicalmente a forma de estar e de pensar. Em vez de investirem na moda, as pessoas querem ter experiências mais sensoriais.
Tudo isto acaba por ser a tal tempestade de que falei. Vamos ver como vai ser o futuro. Não quero ser negativista. Até porque já passámos por uma fase complexa nos anos 90, bem mais complicada do que esta, da globalização, em que a deslocalização das grandes empresas para os países asiáticos causou muita mossa. Mas, com o retorno em força no final de 2010, em que a produção subiu quase 50% e criámos quase 10 mil postos de trabalho, ficámos mal-habituados. Este crescimento algum dia teria de retrair um bocadinho. E estamos a passar uma fase de afirmação e de consolidação no mercado.
Esta entrevista pode ser lida na íntegra na edição impressa da Briefing.