Diário de bordo. Dia #456 de isolamento.

Continuo com mais vinho do que papel higiénico, claramente uma boa decisão. E no primeiro mundo os problemas continuam a ser de primeiro mundo. Acho importante ter a noção de que, para quem está a trabalhar a partir de casa e a ter o seu salário ao fim do mês – como eu –, a situação não é nem pode ser vista como catastrófica, apesar de parecer. Sinto-me um privilegiado por estar bem e ter os meus igualmente bem. Sim, o momento é péssimo, mas não posso deixar de olhar para tudo com esperança e optimismo. Acho que devo isso a todos os que estão piores do que eu. Talvez seja ignorância olhar para as coisas assim, mas a ignorância é uma bênção e acho que não há melhor altura para se ser abençoado. E isto dito por um ateu vale pontos extra.

 

Voltando ao primeiro mundo, trabalho na Alemanha, em Berlim, e estou fechado em casa faz neste momento sete semanas. Sete. Sim, saio para ir ao supermercado ou para correr, felizmente à farmácia ainda não foi necessário deslocar-me. Mas estou disposto a ir lá comprar umas aspirinas só pelo prazer de fazer um novo trajeto. Este é o ponto a que chegámos, querer ir à farmácia só para mudar de ares.

Trabalhar remotamente não é um problema, o problema é que essa situação de liberdade que é o teletrabalho foi transformada numa situação de obrigação e confinamento por força das circunstâncias. Não confundamos trabalho remoto com trabalho em tempos de Covid. Tudo mudou, as relações, o negócio, as próprias soluções para os problemas de comunicação dos clientes e acima de tudo a vida. Mas como nos adaptamos, resulta. Trabalhar remotamente funciona (se é que ainda existiam dúvidas sobre isso), faz sentido e recomenda-se. Como sabem, em Publicidade trabalha-se na maior parte das vezes em dupla e também isso requer novas adaptações face à realidade em que vivemos. Eu e o meu dupla não somos de nos sentar numa sala a falar de trivialidades durante horas até surgir algo. Maioritariamente pensamos sozinhos e juntamo-nos depois para discutir o que cada um tem e perceber o que devemos ou não mudar e apresentar. É o nosso processo. Por isso, trabalhar a partir de casa não mudou grande coisa na nossa dinâmica. Mas mudaram muitas outras coisas. Há projetos adiados, cancelados e um aumento do stress e por vezes das horas de trabalho. Há coisas más, mas há também a necessidade e oportunidade de fazer muito com pouco, de trazer novas soluções para cima da mesa em tempo recorde. A obrigação – mais do que nunca – de ter na criatividade a solução. E isso pode ser bom para qualquer criativo, especialmente se for português, afinal somos todos doutorados em fazer muito com pouco. O que nestes tempos é um skill valorizado globalmente.

Contudo, não deixemos que isso nos consuma, que nos tire a pouca liberdade que agora temos. Mais do que nunca é importante não pensar em trabalho depois do trabalho. O work-life-balance esvaneceu-se a partir do momento em que tudo ocorre no mesmo espaço, sem termos a opção de adicionar novos espaços para os diferentes momentos da nossa vida. Por isso, é fundamental separar as coisas e respeitar essa separação. De outra forma ficamos senis, como diz e bem a minha planta Adelina.

No fundo, tenhamos a noção de que a pandemia vai passar, de que nós – correndo bem –estaremos cá. E, acima de tudo, que nessa altura não tenhamos memória curta e saibamos realmente ser melhores.

 

Gonçalo Martinho, Creative & Art Director na INNOCEAN Europe Berlin

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Terça-feira, 19 Maio 2020 09:40


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