“Acho que foi no dia 6. Sim, exato, dia 6 de março 2020. Por iniciativa própria, naquele dia, optei por ficar a trabalhar de casa – mal sabia que seria o último dia em que teria a opção de não o fazer.
Haviam passado já duas semanas desde a primeira vez que, em Itália, se tinha ouvido falar de Covid19. Mas o pânico ainda não estava instalado – os italianos continuavam a fazer as suas vidas normalmente: saíam à rua, andavam em transportes públicos, almoçavam em restaurantes (sim, por esta altura estes estabelecimentos ainda ficavam abertos até às 18h00). A realidade do dia a dia permanecia inalterada. Pelo menos, aparentemente.
O que começava a mudar era a postura das pessoas. Primeiro, o afastamento físico e o evitar de multidões, depois o olhar de lado para todos aqueles que pareciam suspeitos (mas de quê na verdade?), o evitar tocar nos postes do metro, etc..
Quase sem aviso prévio, a situação piorou drasticamente. Cidade após cidade, foi declarado o Estado de Emergência e a quarentena foi imposta a todos os cidadãos. Com isto, fecharam-nos as escolas, igrejas, museus, galerias e palácios, cancelaram-nos concertos, teatros e palestras.
Pensamos sempre que temos controlo sobre tudo. Até ao momento em que percebemos que não temos controlo sobre nada.
Recordo-me de, mesmo nessa altura, acreditarmos que o vírus não nos iria, nem poderia afetar. Depois, começamos a ficar nervosos e chateados por nos prenderem dentro das nossas próprias casas, privando-nos da rotina a que nos habituámos toda a vida. De seguida, apareceu a raiva e o desespero perante toda esta situação. Ainda assim, tentamos manter o positivismo: se nos mantivermos fechados e longe uns dos outros, tudo irá passar rápido e sem dor. Mas também este se esmoreceu, e a tristeza e desmotivação voltaram.
Hoje, após quase dois meses de isolamento, resta-me acreditar que passamos a aceitar a realidade com que atualmente nos deparamos.
Vivo em Milão há quatro anos e sempre me deixei fascinar pelo barulho e pela energia desta cidade. Agora, os únicos sons que se ouvem são os pássaros ao amanhecer e as sirenes ao anoitecer, qual paradoxo. O efeito da quarentena é assustador: as ruas estão vazias, os escritórios estão fechados, as famílias estão em casa.
Sempre que saio à rua, sinto-me um peão num tabuleiro de xadrez, tenho de medir cada jogada. Dizem que temos de estar a dois metros uns dos outros, mas como meço, com tamanha ansiedade, esta distância? E, de repente, sem darmos por isso, estamos todos a uns bons seis metros uns dos outros.
As filas dos supermercados continuam a dar a volta ao quarteirão e, por isso, todos os que lá vão acabam por perder a noção do que é na realidade essencial comprar e do que compram para evitar a deslocação na semana seguinte. Porque ninguém quer lá voltar, porque mesmo com máscara, luvas e depois de nos medirem a febre à entrada, por breves segundos, sustemos a respiração, com medo do possível contágio a que nos estamos a expor.
As empresas fazem os possíveis para manter a produtividade, mesmo com a maior parte dos funcionários em teletrabalho. Mesmo depois de experimentar todas as plataformas disponíveis, são tantas as videochamadas em que mal percebemos os nossos colegas e tantas outras em que o nosso cliente passa uma hora com o ecrã ao contrário sem se aperceber. No entanto, este teletrabalho começa a levantar uma importante questão para quando tudo isto passar: se conseguimos fazer grande parte do nosso trabalho a partir de casa, porquê irmos todos os dias para o escritório? Apercebemo-nos que era tudo uma questão de inércia.
Felizmente, encontro-me bem de saúde, bem como todos aqueles que me são queridos. Não obstante, vivo com medo. Eu e todos aqueles que conheço (arrisco-me até a dizer que todos aqueles que não conheço e que estão nesta situação). Um medo inevitável, uma paranoia generalizada e uma ansiedade que teima em não desaparecer.
Sabemos que o mundo como o conhecíamos dificilmente existirá de novo e o que mais assusta é não saber o que nos espera no futuro. As economias conseguirão dar a volta? Voltará a haver proximidade entre as pessoas? Quando deixaremos de sentir esta solidão avassaladora? Ficaremos vulneráveis até quando?
É uma dor coletiva. É uma incerteza sobre o futuro. É uma insegurança em relação à realidade que estamos a viver. Já não conseguimos pensar no insignificante. Nunca mais seremos os mesmos.
E uma das dúvidas que mais pairam sobre nós é se, quando nos for permitido sair de novo, teremos a mesma vontade e o mesmo conforto? Ou o que agora nos parece anormal, passará a ser a nossa nova ‘normalidade’?”