Marcas em Tempo de Guerra – #1 Aqui e agora

Num artigo escrito para a revista Backstage Talks, intitulado “É o que fazemos valioso o suficiente?”, Milan Semelak, criador de marcas, relata um raciocínio pessoal que acredito ser, nas circunstâncias atípicas que vivemos, muito pertinente recuperar. Motivado por uma questão colocada pela mulher sobre que ocupação teria em tempo de guerra, Semelak começa por duvidar da utilidade da comunidade profissional a que pertence — criativos, designers, marketeers e por aí adiante — numa situação tão extrema. Como o próprio admite, num esforço de guerra, quando as pessoas estão a lutar pela sobrevivência, logotipos chiques, campanhas de publicidade e retórica de marketing não são propriamente necessidades de primeira linha. Neste contexto, um arquiteto ou um padeiro, por exemplo, seriam mais importantes, na medida em que, segundo Semelak, produzem valor efetivo para as pessoas que os rodeiam.

 

Com elevado grau de certeza, imagino que este conflito esteja muito presente, por estes dias, na mente dos mais variados responsáveis de marca (a trabalhar a partir de casa, esperemos). Afinal, é impossível continuar como se nada fosse, mas também não é prudente simplesmente esperar que passe. Uma ambivalência tão compreensível, quanto legítima (e, ao contrário do absolutismo que geralmente acompanha os textos sobre marcas, não acredito que possam já existir certezas perante um cenário que é, a muitos níveis, completamente novo).

Diante da sua própria hesitação, Semelak relembra (a ele próprio e aos leitores) que os criativos, no geral, são exímios a resolver problemas e a entender o ser humano (os melhores, pelo menos). E que grande parte do seu trabalho envolve relacionar pessoas, ajudá-las a comunicar umas com as outras e divulgar eficazmente propostas de valor de todo o tipo. Nesse sentido, segundo conta Semelak, a resposta que deu à desafiadora pergunta da mulher foi peremptória: sim, seria útil num período de guerra e não apenas num departamento de propaganda governamental — a escolha, porventura, mais óbvia. Enquanto comunicador e tradutor de ideias, Semelak sugere que poderia ajudar pequenos negócios a tornarem-se epicentros da sua comunidade local; colaborar com organizações maiores para estas darem um muito necessário apoio real e tangível aos seus consumidores; redesenhar os sistemas de navegação das cidades; criar ferramentas e plataformas para ajudar as pessoas a comunicarem entre si, numa altura em que a comunicação assumiria importância extrema; ou até mesmo aproveitar as suas competências específicas para criar um movimento de luta pela paz. No fundo, afirma, poderia fazer bastante.

É precisamente a conclusão semelhante que muitas marcas parecem ter chegado nos últimos dias. Não estar próximo da linha da frente, onde a ajuda é mais necessária, não significa aceitar fatídica ou passivamente a situação. O amplo movimento de humanismo a que temos assistido assim o confirma. De pequenos gestos a ideias musculadas, inúmeras organizações têm colocado os seus recursos à disposição do público, criando valor real — e essencial — para enfrentar uma crise que poucos antecipavam. Mesmo empresas de quem talvez pouco esperamos: não é forçado admitir que, enquanto consumidores, olhamos para as operadoras de telecomunicações com algum cinismo; mas a verdade é que foram elas as primeiras a apresentar soluções concertadas, tendo em vista a longa quarenta que nos espera.

Estas iniciativas merecem uma vénia sincera, e é também esse o intuito desta série de textos que hoje lançamos. Mas não só. A dimensão humana, que nestes tempos extraordinários parece ter prioridade absoluta, coloca a descoberto uma particularidade tantas vezes ignorada em tempos banais: a de que o potencial positivo das marcas é imenso. Para que tal lição não se revele tão efémera quanto desejamos que a crise seja, é preciso reflectir sobre ela. Para que não desperdicemos as marcas em tempo de paz, devemos falar de marcas em tempo de guerra. Aqui e agora.

 

Tendo como cenário as atípicas circunstâncias para as quais a Covid-19 atirou o mundo, “Marcas em Tempo de Guerra” é uma série de artigos, sem guião fixo, que pretende olhar para e refletir sobre o potencial positivo das marcas na sociedade. O título é, em jeito de homenagem, uma apropriação do título do programa “Dançar em Tempo de Guerra”, da Companhia Nacional de Bailado, também ele “vítima” circunstancial da Covid-19.

João Campos, diretor criativo do Estúdio João Campos e autor do livro “Marca Positiva”

briefing@briefing.pt

 

Quarta-feira, 18 Março 2020 11:24


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