Trata-se de uma história admirável, digna dos mais altos louvores públicos. Mas hoje, no cenário excepcional para que fomos atirados, parece ter impacto diminuído. A razão é simples: um pouco por todo o lado, temos visto inúmeras marcas revelarem uma dimensão humana verdadeiramente extraordinária. E essas são boas notícias. Para os tempos que se avizinham, certamente; mas, mais importante, para os que vierem depois. Porque ainda cá estaremos — nós e elas.
Se dúvidas havia, as duas últimas semanas provaram que, por detrás de cada marca, existe um potencial positivo imenso. Tendemos a esquecer, entre as poucas tréguas que o mundo real nos permite, mas as marcas são construídas por pessoas e para pessoas. E as pessoas, regra geral, superam-se em situações extremas.
Esta simples verdade — quase la paliciana, convenhamos — ajuda a explicar o que tem sido um movimento de solidariedade memorável, com marcas de todos os quadrantes a investirem esforços, tanto no apoio directo a instituições públicas de saúde, cronicamente insuficientes, como ao público em geral, vítima expectante da pandemia. (Fazer aqui uma lista de iniciativas — condenada, à partida, a ficar incompleta —, seria uma tremenda injustiça. Mas um bom apanhado de exemplos pode ser encontrado aqui.)
A edificação deste espírito humanista inédito assenta sobre um alicerce, também ele, pouco comum: estamos todos, pela primeira vez em muito tempo, na mesma situação. Tanto as pessoas que trabalham marcas, como as pessoas para quem as marcas são trabalhadas. E esse é, talvez, um ponto sobre o qual devemos reflectir.
Regressemos à história da Tesla que abriu este texto. A ameaça representada pelo furacão Irma, embora violenta e urgente, pendia sobre uma geografia (e uma população) circunscrita — a Florida. Quer isto dizer que a sugestão de desbloquear as baterias pôde apenas resultar de uma grande dose de empatia: simplificando, alguém teve de se identificar com o sofrimento alheio e agir sobre tal projecção afectiva. E, por isso, a história da Tesla é, ainda, uma história excepcional.
Ora, se formos justos, neste cenário precipitado pela Covid-19, a empatia necessária para levar avante iniciativas semelhantes é substancialmente inferior, na medida em que se trata de uma circunstância adversa partilhada. Por outras palavras, nenhuma acção depende de uma identificação demasiada abstrata, com um consumidor demasiado distante. Pelo contrário. E o resultado, somos testemunhas, é magnânimo: a proximidade ao problema tem dado às marcas a oportunidade de iluminar o caminho. Mas como será, então, quando regressarmos à normalidade, com a distância de volta ao seu lugar habitual?
Talvez um dos aspectos positivos, se assim lhes podemos chamar, dos tempos de crise é o facto de um estado de emergência nos obrigar a rever prioridades. Neste caso em concreto, é a importância da empatia na gestão de marca que sai reafirmada. Afinal de contas, na falta de uma crise global, só a empatia permite a uma qualquer organização sintonizar-se com os desafios particulares do seu público, com repercussão positiva igual à que tem sido tão justamente saudada. Em tempos mais banais, livres de pandemias e de furacões, só a empatia encurta distâncias.
Não se trata de uma ideia particularmente nova, sejamos honestos. Mas ainda que repetida à exaustão, é, também, regularmente perdida entre a urgência das contas mensais e a sombra dos objetivos trimestrais — as tais obrigações que o mundo real é pródigo em empolar, e as crises em relativizar. Aproveitemos, por isso, esta interrupção da normalidade, para colocar de lado a complexa trama corporativa, e recordar que, na génese de cada marca, materializada sobre a forma de um produto, de um serviço ou de algo no meio, existe uma ideia, uma intenção, um desejo latente de acrescentar valor a uma determinada fatia da população. E que essa ideia, intenção, desejo — expressão máxima da empatia de marca — é, ainda e sempre, a justificação da sua existência. Regressemos, enfim, às origens, para daqui para a frente fazermos das marcas o que elas verdadeiramente são: pessoas a trabalhar para pessoas.
Tendo como cenário as atípicas circunstâncias para as quais a Covid-19 atirou o mundo, Marcas em Tempo de Guerra é uma série de artigos, sem guião fixo, que pretende olhar para e reflectir sobre o potencial positivo das marcas na sociedade. O título é, em jeito de homenagem, uma apropriação do título do programa Dançar em Tempo de Guerra, da Companhia Nacional de Bailado, também ele “vítima” circunstancial da Covid-19. Pode ler o primeiro aqui.
João Campos, diretor criativo do Estúdio João Campos e autor do livro “Marca Positiva” (Influência, 2019).