Marcas em Tempo de Guerra – #3 Orgulho e preconceito

“Enquanto os outros choram, venda lenços”, diz o adágio. Com a sabedoria que reconhecemos ao povo, o conselho é claro: há sempre oportunidades para agarrar, mesmo quando a situação está longe do ideal. No abstracto, é um bom estímulo empreendedor. Mas e quando o chorar não for apenas uma metáfora e sim uma dura realidade… o que fazer, então, aos lenços?

 

Esta incerteza — ou uma versão dela — estará, por estes dias, no topo das preocupações de quem tem marcas para gerir. E, apesar de tudo, a resposta parece ser tendencialmente unânime: é altura de dar lenços, não de os vender. São boas notícias, como tenho insistido. Até porque, felizmente, há lenços para todos os gostos e necessidades. De organizações que mudaram as suas operações para produzirem material imprescindível na linha da frente — máscaras, viseiras, álcool ou gel desinfectante —, às empresas que têm colocado os seus recursos em prol do bem-estar (do) público.  

Não deixa de ser irónico, contudo, que este espírito solidário contrarie aquele que é o olhar céptico que a sociedade tende a reservar às marcas. Facto que se observa, até, no pouco à-vontade com que a comunicação social não especializada em marketing aborda o tema: não há muitos dias, por exemplo, um noticiário relatava o caso de uma empresa que acabara de adaptar a linha montagem para produzir aros de viseiras, destinados a serem oferecidos a hospitais locais; contudo, em momento algum da peça, o nome da empresa foi referido. Um título genérico — empresa do norte, se não me engano — serviu para o efeito. Em contraste, o segmento imediatamente a seguir comentava a incessante actividade dos dois maiores distribuidores alimentares, nomeando-os sem dificuldade.

Não estou, com isto, a sugerir que exista aqui uma qualquer tentativa de favorecimento. Mas enquanto a actividade regular dos distribuidores alimentares — também louvável em tempos de pandemia, sublinhe-se — encaixa, sem grande desvio, no molde que serve habitualmente a sociedade, uma empresa comercial a fazer trabalho assumidamente solidário é, em sentido contrário, mais difícil de enquadrar na regra. E porque o senso comum tende a desconfiar da benevolência publicitada, omitem-se os nomes. Como lembra Peter Singer, filósofo e professor de ética, “Jesus disse que devemos dar esmolas em privado e não quando os outros estão a olhar”.

Este tabu, chamemos-lhe assim, não é particularmente novo. Quando o tema é solidariedade, falar em marketing arrasta consigo as pesadas correntes do oportunismo. Mas serão estas duas perspectivas ­­— marketing e humanismo — assim tão inconciliáveis? Tão diametralmente opostas?

É curioso que Adam Smith, pai espiritual do capitalismo, reconheceu, de certa forma, que o desejo de consideração fazia parte da equação do interesse próprio de cada indivíduo. E, nesse sentido, as obrigações morais que o ser humano tão bem sabe trocar seriam, também elas, apontadas à maximização da sua utilidade individual. Em Psicologia, esta dualidade simultânea de motivações é bem conhecida, ao ponto de a existência do altruísmo puro ser amplamente questionada. O argumento é provocante: mesmo acções solidárias abnegadas, sem resultados materiais directos, podem alimentar e projectar uma imagem social desejada — um benefício próprio a que chamamos vulgarmente de reputação (e é talvez por isso que o LinkedIn tem uma secção de voluntariado pré-preparada).

Nada disto nos deve surpreender muito; afinal, fomos educados para nos portarmos bem, sob pena de o Pai Natal deixar o nosso sapatinho vazio. Mas então por que é que, enquanto consumidores, tendemos a recusar a mesma dualidade às marcas? Será assim tão inaceitável que se possam dar lenços, contribuindo para o bem comum em troca de um aumento positivo de reputação? Sim, a reputação poderá significar ganhos materiais a jusante, mas, outra vez pelas palavras de Peter Singer, “certamente que o que conta é que algo foi dado para uma boa causa”. E com um detalhe importante: ao contrário de um sempre questionável altruísmo, não existe nenhuma motivação oculta nesta lógica — sabemos intuitivamente que as marcas, enquanto marcas que são, têm necessidades financeiras, mesmo quando não estão a gritar desesperadamente pelo nosso dinheiro.

Talvez este seja o momento certo para contrariar o preconceito. Se olharmos com atenção, as organizações têm provado o seu potencial solidário e positivo, não omitindo as suas insígnias; e o público, de um modo geral, tem aplaudido. É verdade que o bem social que se tem produzido é tão evidente e tão visceralmente necessário, que tende a abafar a desconfiança usual. Mas isso quer apenas dizer que o passo mais complicado está dado. Com o aparente acordo da sociedade, a pandemia provou que as marcas têm na abordagem humanista, se não a melhor, pelo menos uma óptima estratégia de marketing. Há que agarrar oportunidade. Com orgulho e sem preconceito.

 

Tendo como cenário as atípicas circunstâncias para as quais a Covid-19 atirou o mundo, “Marcas em Tempo de Guerra” é uma série de artigos, sem guião fixo, que pretende olhar para e reflectir sobre o potencial positivo das marcas na sociedade. O título é, em jeito de homenagem, uma apropriação do título do programa “Dançar em Tempo de Guerra”, da Companhia Nacional de Bailado, também ele “vítima” circunstancial da Covid-19.

Pode ler os dois primeiros artigos da série aqui e aqui.

 

João Campos, diretor criativo do Estúdio João Campos e autor do livro “Marca Positiva” (Influência, 2019)

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Quarta-feira, 01 Abril 2020 11:11


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