Hoje, mais de um século depois, uma história como esta parece verdadeiramente impensável. Não porque a falta de escrúpulos esteja extinta, mas porque o edifício económico assenta num sistema de tripla apólice — marcas, globalização e internet —, que serve de caução contra abusos de maior. E o público, com uma percepção mais ou menos nítida desse sistema, habituou-se a contar com ele.
É claro que escândalos como o chamado dieselgate — que expôs um esquema de técnicas fraudulentas utilizadas pela Volkswagen para ocultar as emissões poluentes dos seus veículos —, parecem contradizer esta lógica. Mas trata-se precisamente do contrário: o facto de os responsáveis terem sido levados à justiça, e a marca a julgamento social, é sinal de que o sistema, com as suas imperfeições, vai funcionando. E, por isso, qualquer marca sabe hoje que, se vender gato por lebre — ou talos de couve por sardinha —, terá, provavelmente, dias complicados pela frente.
Esta premissa tem, contudo, um pequeno calcanhar de Aquiles: funciona sobretudo por dissuasão, não por educação. Isto é, apenas previne abusos enquanto os riscos forem percebidos como superiores às recompensas. O oportunismo fica dormente, não necessariamente extinto.
Isto quer dizer que, em tempos banais, as salvaguardas são suficientes. Não invulneráveis, mas suficientes. Porém, tal como a “ocasião faz o ladrão”, a circunstância revela o oportunista. E para provar tal augúrio, a nossa pandemia tem, também, sido fértil: preços de bens vitais a subir em flecha, pressões laborais abusivas e, claro, lay-offs questionáveis.
Não é fácil — nem justo — avaliar as resoluções de cada organização sem conhecimento apropriado da sua realidade particular. Nesse sentido, este texto não pode ser mais do que um alerta: a racionalidade económica, ainda que legal, não equaciona o sentido de justiça interno do ser humano. E para o provar, nada melhor do que os resultados de um estudo liderado por Daniel Kahneman, reputado psicólogo e prémio Nobel da Economia. Em “Fairness as a Constraint on Profit Seeking: Entitlements in the Market”, publicado originalmente em 1986, foi colocada a hipótese de um armazém de ferramentas aumentar o preço de venda de pás de neve na manhã seguinte a uma tempestade. A maioria dos entrevistados foi peremptória na resposta: a subida era injusta.
Trata-se de um cenário simples que ilustra bem a clássica lei da oferta e da procura: a subida de preço de um bem, como reacção ao acréscimo previsível da sua procura. Porém, existe aqui uma nuance particular que a lógica económica convencional não contempla: a oportunidade foi criada por um acontecimento fortuito, não por mérito do armazém. E, talvez mais significativo, esse acontecimento fortuito assumia a forma de um desastre natural. Ora, para os entrevistados, o eventual aproveitamento financeiro de uma circunstância tão sensível foi tido como oportunista. Sugere Kahneman, uma quebra na confiança depositada na organização.
Quem tentou comprar álcool nas duas últimas semanas experimentou um cenário em tudo igual a este — e terá, com certeza, questionado algumas lealdades. Muito material médico de protecção seguiu o mesmo caminho. Porém, subir preços de forma repreensível é apenas parte das decisões controversas que, apesar de economicamente legítimas, são moralmente condenáveis. É difícil compreender, por exemplo, que uma multinacional com volumosos lucros anuais possa ser das primeiras a colocar trabalhadores em lay-off. Ou que um call-center, já com casos de infecção confirmados entre as suas fileiras, demonstre relutância em colocar as equipas em teletrabalho.
Para todos estes exemplos, e outros em águas igualmente turvas, a conclusão é simples: apenas porque podem, não quer dizer que devam. Essa é a lição do estudo de Kahneman. Qualquer organização deve colocar o ser humano antes da sua carteira. O ser humano trabalhador, o ser humano consumidor, o ser humano cidadão. Mais do que todos, o ser humano atirado para as trincheiras, à procura de uma pequena trégua numa lata de sardinha. Não fazê-lo é hipotecar o próprio futuro da organização. Ou será forçado afirmar que, enquanto trabalhadores, evitaremos as organizações que agora se provarem abusivas? Que, enquanto consumidores, dispensaremos as marcas que agora se demonstrarem oportunistas? Que, enquanto cidadãos, condenaremos as ameaças que agora forem tentadas contra o bem-estar comum?
Já dizia Rita Clifton, antiga presidente da Interbrand no Reino Unido, “a reputação é, afinal de contas, a realidade com um efeito retardado”. Nenhuma organização, como nenhuma pessoa, deve esquecer: há conservas que não se voltam a abrir. Há pontes que, uma vez cruzadas, jamais têm volta atrás.
Tendo como cenário as atípicas circunstâncias para as quais a Covid-19 atirou o mundo, “Marcas em Tempo de Guerra” é uma série de artigos, sem guião fixo, que pretende olhar para e reflectir sobre o potencial positivo das marcas na sociedade. O título é, em jeito de homenagem, uma apropriação do título do programa “Dançar em Tempo de Guerra”, da Companhia Nacional de Bailado, também ele “vítima” circunstancial da Covid-19.
Outros artigos desta série:
#1 Aqui e agora
João Campos é diretor criativo do Estúdio João Campos e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019)