Briefing | O que levou a escolher este timing para anunciar a saída da Havas?
Ricardo Monteiro | Escolhi deliberadamente faze-lo agora porque é um momento ótimo para a Havas, a empresa a que dediquei os últimos 17 anos da minha vida. Deixo a empresa num momento em que apresenta resultados recorde a nível mundial, incluindo Portugal. Em todas as geografias e em todas as disciplinas, a empresa continua a expandir-se. São resultados para os quais também contribuí, mas é uma empresa de quase 19 mil pessoas e apenas dei a minha pequena contribuição. Orgulho-me muito desses resultados. E sempre achei que é bom sairmos quando o podemos fazer de cabeça levantada e com orgulho na obra apresentada. E foi o que aconteceu.
Briefing | Diz que sai num ótimo momento. Qual tem sido o desempenho do grupo?
RM | A publicidade é uma das atividades que até ao advento da Internet era altamente concentrada. Há cinco ou seis grupos internacionais que concentram 70 ou 80% da publicidade que é veiculada no mundo, tanto na sua criação, como na compra e tramitação do espaço publicitário – WPP, Omnicom, Publicis, Interpublic, Havas, Dentsu. De todas elas, a Havas, sendo grande e tendo presença no mundo, é a mais pequena, pelo que há um espaço de conquista aos nossos concorrentes que pode constituir o terreno para o nosso crescimento. E estamos realmente a crescer acima do que crescem os nossos concorrentes. E nessa medida estamos a conquistar quota de mercado, pouco a pouco, mas estamos.
Acontece, no entanto, que houve uma mudança muito grande nos últimos anos. Foi que o mercado se ampliou de forma gigantesca com a abertura de novos espaços publicitários – todos os que a Internet facilita. Hoje em dia, um Google ou um Facebook são concorrentes de uma agência de publicidade, porque eles próprios criam conteúdo publicitário e porque eles próprios providenciam e vendem espaços publicitários. Isto significa que àquela grande concentração da indústria que existia há que acrescentar todo o espaço novo de expressão, de criação e de venda criado com a chegada destes novos players. Hoje é uma indústria muito diversa e nunca se sabe quando é que aparece um novo concorrente que, parecendo lateral à nossa profissão, é realmente um concorrente direto e, à partida, global. Não tem territorialidade. Ora, uma agência de publicidade, tal como foi concebida na sua origem, tem um problema de territorialidade e é muito difícil ultrapassar as barreiras dessa herança. Mas continuam a prosperar porque, muitas vezes, os clientes também têm a barreira da territorialidade, têm dificuldade em se aperceber que há um mundo imaterial sem fronteiras.
Repare que, quando se fala na fusão de grandes redes de publicidade, já ninguém se preocupa com a concentração, porque basta a existência do Google, do Facebook, do Snapchat, do Instagram para essa concentração já não existir.
Briefing | Esses novos players implicam que os grupos publicitários adotem uma nova visão?
RM | Implicam outra visão e outro grupo de preocupações, aliás enormes. Mas a reflexão não é só das empresas, é societária. A Havas, apesar de tudo, não tem acesso aos dados pessoais de milhares de pessoas. Mas o Google tem. O Facebook tem. A Europa, e muito bem, já iniciou essa discussão, com a preocupação da proteção dos dados pessoais, com o direito ao esquecimento. O advento destas novas armas, embora facilitando imenso a vida de toda a gente, na propagação do conhecimento, no acesso à informação, traz também esta vertente dos limites da privacidade. Apesar de tudo, a publicidade sempre respeitou esses limites, era um a falar para todos – quem queria ouvia, quem não queria não ouvia. Hoje em dia, a publicidade é programática, isto é, dirigida as pessoas com padrões de consumo muito determinados, chega-lhes nos momentos em que sabe que deve chegar, com a mensagem que sabe que deve ter, com a frequência que sabe que tem de ter para conseguir a tradução disso num determinado comportamento de consumo. É um mundo novo. Eu diria que, em muitos aspetos, não necessariamente melhor, mas realmente extraordinário.
Briefing | O bom estado de saúde da Havas é extensível a Portugal. As agências não se ressentiram com a crise?
RM | As empresas da Havas em Portugal entraram na crise muito fortes, porque já eramos a primeira agência em Portugal – hoje em dia, temos a primeira e a segunda, respetivamente a Havas Worldwide e a Fuel. Mas, em 2008, tínhamos uma posição de grande força no mercado nacional, o que nos permitiu enfrentar esta terrível crise. A Havas nunca desinvestiu em Portugal, em nenhum momento foi pedido pelo acionista que a empresa fosse ordenhada e que daqui se retirasse todo o dinheiro possível porque Portugal era para esquecer. Não. Pelo contrário, o acionista manteve a sua aposta no País. É verdade que caiu a nossa rentabilidade, mas caiu muito menos do que nas outras. Alguns concorrentes nossos multinacionais desistiram, é bom que se tenha noção disso – transformaram as suas agências em afiliadas, houve concentrações, mantiveram-se as marcas mas são meramente uma casca de ovo. Desde 2013 que a atividade retomou o crescimento em Portugal. E o ano passado foi o terceiro ano de retoma de crescimento, tanto dos proveitos, como da rentabilidade da empresa. Hoje em dia, está bem e recomenda-se.
Digo com orgulho que temos em Portugal a maior quota de mercado de todos os países do mundo – em nenhum outro país do mundo, temos a primeira e a segunda agência. A posição da Havas em Portugal é invejável. Eu não teria descolado se este percurso não tivesse sido reconhecido pelo grupo.
Briefing | O seu percurso na Havas iniciou-se numa altura em que a agência não estava perto da posição que detém hoje…
RM | Era uma empresa forte, mas não tinha, de facto, a posição que tem hoje. E, mais ainda: quando me juntei, aconteceu uma coisa que transformou a nossa atividade e que foi a separação da compra de media da atividade criativa. A então EuroRSCG tinha uma empresa que comprava media, a Mediapolis, que foi agregada à Media Planning, tendo saído da agência a vasta maioria da sua faturação e da rentabilidade. Foi um ano de crise para a indústria criativa. Éramos a sexta ou sétima no ranking, mas um ano depois éramos n.º 1.
Briefing | Qual foi o turning point?
RM | Foi termos ganho a conta do Continente, que entretanto está na Fuel. É uma longa ligação à qual tenho de manifestar o meu reconhecimento público: o grupo Sonae sempre manifestou uma enorme lealdade com as empresas da Havas, comigo próprio e com as pessoas que me rodeiam, permitiu-nos fazer campanhas memoráveis.
Depois, houve um momento em que já estávamos em primeiro lugar, em 2003, e ganhamos a campanha do Euro 2004. Não fizemos só a campanha, fizemos o logótipo, decorámos os autocarros, os estádios, desenhámos os bilhetes – foi uma campanha extraordinária com o êxito que se conhece. Digo sempre que 2004 foi o último ano em que os portugueses achavam que tínhamos futuro.
Essa campanha foi vista na Europa inteira. Não só foi ótimo do ponto de vista do negócio, como foi ótimo do ponto de vista da visibilidade. E é nessa altura que é chamada a atenção dos gestores internacionais para a nossa posição relativa em Portugal, quer para a rentabilidade do negócio, quer para a nossa capacidade de fazer coisas. É aí que me confiam a primeira missão internacional, nos países nórdicos. Não correu muito bem, devo dizer, mas não desistiram de mim. Foi devido a Portugal. Tudo o que um português consegue é devido a Portugal. A identidade é tão marcada, a cultura é tao forte… mas não temos consciência disso. A prova última da força de um país está na sua sobrevivência e nós somos dos países mais antigos do mundo dentro das atuais fronteiras. Mas não só sobrevivemos, multiplicámo-nos e expandimo-nos. Sinto-me muito português. Nunca aceitaremos que somos um povo excecional, mas somos.
Briefing | Como olha para o estado da arte da publicidade em Portugal?
RM | Acho que temos a publicidade que o País permite ter. A publicidade em Portugal não é melhor nem pior do que noutros países, temos é uma atividade que é economicamente mais pobre, tal como o País. A publicidade é o reflexo da atividade económica e das sociedades. Os grandes publicitários internacionais são indivíduos que se inserem numa profissão que os remunera principescamente. E o dinheiro que gira à volta da publicidade é muito importante para que a publicidade seja rica. Se tiver de fazer publicidade para um cliente que tem meios económicos limitados é mais difícil conseguir peças excecionais – isto é uma indústria, apesar de tudo. Portugal já teve duplas vencedoras nos Young Creative de Cannes, mas aí é quando se retira a atividade industrial e se avalia apenas o talento.
A outra razão pela eventualmente não temos tão boa criatividade como tivemos no passado tem a ver com o declínio da economia. Se a atividade gerar muito dinheiro, a indústria é capaz de ir recrutar os melhores. No Brasil recrutamos publicitários em concorrência com a banca de investimento ou com empresas de software ou com o Google e em Portugal não posso recrutar em concorrência com o Google. A indústria não tem a capacidade económica de remunerar essas pessoas da mesma forma. Há aqui uma realidade económica que condiciona muito o produto criativo das agências de publicidade. Mas não quero que daqui fique a ideia de que a nossa criatividade é pior. Não é.
Briefing | E quanto ao mercado das agências?
RM | Portugal transformou-se num mercado menos relevante para a maioria das redes internacionais – não para a nossa e há outras que também mantiveram a dimensão e a qualidade. Mas houve redes que desinvestiram de Portugal, que passaram a olhar para o país como um centro de prejuízos. Deixaram aqui aquilo que o Carlos Coelho em tempos chamou de balcões da publicidade, que continuam a servir alguns clientes mas por vezes já sem participação no capital. Diria que há apenas duas multinacionais que continuam a investir em Portugal – nós e a WPP. Todas as outras, não tendo saído, desinvestiram. Esta é a minha avaliação.
E há duas marcas de publicidade portuguesas que prosperaram, a Partners e a BAR. Acho que a Partners tem um modelo de negócio mais sustentado e sustentável o que a BAR, que está muito dependente do mercado angolano. Mas são duas empresas que fazem um bom trabalho ao nível das multinacionais.
E depois existe um longo tail de pequenos núcleos criativos, normalmente chefiados por criativos e que fazem trabalhos ad hoc para alguns anunciantes. São pessoas com talento, mas que não se estruturam como empresas e a publicidade, apesar de tudo, é uma indústria. São epifenómenos.
Esta entrevista pode ser lida na íntegra na edição impressa da Briefing.