Uma forma de converter o tédio em desenho. É assim que José Godinho Marques recorda o despertar do interesse pela pintura. “Davam-me um papel e um lápis e entretinha-me durante horas”, conta. “Felizmente”, diz, que esteve desde cedo em contacto permanente com museus e algumas coleções particulares. E com figuras como o mestre escultor Anjos Teixeira, o autor, entre outras obras, de todas as mãos das estátuas do Padrão dos Descobrimentos. Foi com este artista, aliás, que foi desenvolvendo capacidades de desenho por volta dos 14 anos de idade. Resultado: aos 18 já expunha no Salão da Primavera do Casino Estoril, para autores sub trinta. Uma das várias exposições coletivas em que participou na altura.
A publicidade e a pintura sempre se cruzaram na sua vida. E antes de entrar na ESBAL – Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa já trabalhava em agências de publicidade. “A pintura e o desenho foram-se tornando skills para a obra gráfica de agência – storyboards, layouts, desenho de letra”, revela.
A paixão reavivou-se há cerca de dois anos, depois de uma “fase menos boa” na vida pessoal. “Quase que fui obrigado a expor, pela mão do meu querido amigo e ex-copy (from the nineties) Nuno Cardoso, atualmente partner e diretor criativo da NOSSA”, admite. “O Nuno sempre foi um aficionado pela arte”, diz. “Éramos uma dupla insuportável: fazíamos cartoons sobre o dia a dia dos nossos diretores criativos na Euro RSCG”, confessa. “Enchíamos as paredes com piadas de mau gosto devidamente ilustradas. E que, no fundo, se tornariam verdadeiras ações de team building, pois metíamos todo o staff de uma agência gigantesca a rir e a fazer parte”.
“Foram tempos inesquecíveis”, lembra. “E o Nuno fez-me acreditar na pintura como verdadeiro fator transformacional de atitude perante tudo. Se está na nossa essência, é para explorar”. E explorou e deu a conhecer ao público, na primeira exposição em nome próprio. Aconteceu em setembro de 2017, na Mona – Idea Store, uma loja de ideias que apoia e promove o trabalho de publicitários, designers, realizadores e profissionais da comunicação. A mostra chamava-se “Viagem de Uma Lágrima” e reunia dez pinturas que assumiam a naturalidade da tristeza e do choro. Acabou a vender obras para pessoas de Copenhaga e Amesterdão.
Pouco tempo depois estava “novamente na teia das marcas”, quando surgiu o convite da agência 004 para fazer uma intervenção ao vivo no Web Summit, para o Montepio Geral. “Aí, sim, o sentimento de exposição foi absolutamente visceral”, assegura.
“Pintar ao vivo é um campeonato estranho para quem tem uma essência tímida”, comenta. “Foi uma experiência incrível, pelo briefing que recebi: passar os valores da marca utilizando unicamente a cor da mesma. Assim o fiz, em formato 4×3. Centenas de visitantes passavam pelo stand da marca e fotografavam, conversavam, partilhavam, questionavam”. “Foi muito peep show, muito voyeurismo”, que, entretanto, o ajudou a libertar da timidez normal, “sendo um rapaz com fracas skills de palco, fora das apresentações de campanhas”. “No fim foi engraçado ver o resultado”, observa.
Uma nova exposição está já em planeamento, ainda que não dedique o tempo que gostaria à pintura. “Naif e enérgica. Descomprometida e honesta”. É assim que caracteriza a sua arte. “Gosto muito de explorar o lapso do gesto, a irregularidade, o desprendimento formal”, afiança. A inspiração vem essencialmente das pessoas e das “construções mentais que geram”. “Os sentimentos diametralmente mais opostos. A liberdade e a posse. O amor e o ódio. A verdade e a mentira. Tudo o que seja intenso e que venha da natureza humana, na sua forma mais primária”.
O processo criativo, esse, “simplesmente acontece”. “Sem condicionantes”. “É traçar o que vai na alma, e tornar esse emaranhado numa peça que consiga tocar outros para além de mim”, partilha. “Traduzir sentimentos numa língua que se torne universal. É um acontecimento e não um processo”, entende. “É um exercício de liberdade precioso para quem investe o seu tempo a criar para marcas”.
E é também para o seu trabalho como criativo que este hobby contribui decisivamente. Ganha foco. “Ou o ataque à falta deste”. “E o facto de visualizar as coisas em formato de parede ajuda a trazer rigor para o formato ecrã, pois é neste que vivemos hoje a maior parte dos nossos dias”, observa.
A pintura assume, como tal, neste momento, uma “imensa” importância na sua vida. “Traz-me limpeza de ideias, clarividência, sossego. Traz-me à tona se me afundo, leva-me a aprofundar tudo o que poderia ser superficial”, reconhece. “É um encontro comigo, um date apaixonado sem jantar ou cinema, mas sim pincéis, grafites, acrílicos e tintas da china”, confessa.