A culpa nunca é da tecnologia ou de quem a inventa. A tecnologia é apenas uma ferramenta. A culpa, a haver, é nossa. Totalmente nossa. E quanto à (suposta) dependência, essa também sempre existiu. Quem não se lembra dos couch potatoes(*) ou dos viciados em videojogos, ficando dias a fio a jogar, sem comer ou dormir? Também já nos esquecemos dos que se viciaram em tantas outras coisas? A culpa nunca foi do instrumento. A culpa é sempre do indivíduo. De algo que falha na sua vida e o faz necessitar de estar em contacto permanente com algo a que hoje chamamos tecnologia. Quanto ao fim dos casamentos… A culpa também não é (só) da tecnologia. A culpa, a existir, é deles. Do casal. Nunca de apenas um deles. Da mesma forma que quando ele, ou ela, se atravessa no caminho e estimula a infidelidade, a culpa não é apenas desse “ele” ou “ela”. É deles. Do casal que não comunicou, que se afastou, que desistiu. Que nem a tecnologia usou para reavivar uma ligação perdida. O “ele” ou “ela” são apenas o empurrão para o que já estava à vista e ninguém queria ver.
Não me lembro de alguém culpar a imprensa porque um casal se sentava numa esplanada durante horas, jornal de um lado, revista do outro, um café e o espaço partilhado. Nada mais. Sem trocarem uma palavra. Não é o jornal, também ele, uma forma de tecnologia?
O mesmo acontece com as crianças. Olhamos tantas vezes e pensamos “coitadas, agarradas ao tablet”. Muitos pais já não são capazes de as controlar. De as entreter. Errado. Os pais são capazes de o fazer, mas não querem. Demitiram-se dessa sua função árdua que é cuidar de uma criança, mesmo nos momentos de menor paciência (para ambos). As crianças não são apáticas por natureza. Ou pacientes. Querem descobrir o mundo. Por isso, quando lhes entregamos o mundo através de um ecrã cheio de cores e movimento, esse mundo fica bastante reduzido. Dá mais trabalho, é verdade, mas porque não substituir o tablet por uma folha em branco e lápis de cor? Elas descobrem um admirável mundo novo e desenham o mundo de acordo com a sua imaginação…
Talvez tudo isto aconteça porque achemos o mundo à nossa volta pouco interessante e preferimos ver o mundo – esse outro mundo que dizem ser virtual e que muitos consideram real – através do brilho do ecrã. Não há mal nenhum nisso. Um pacote de batatas fritas não arruina uma dieta. Os médicos dizem – com razão – que podemos comer de tudo. Regradamente. Se aplicarmos este princípio a (quase) tudo na vida talvez consigamos relativizar as coisas.
Andamos todos deslumbrados com a chamada de atenção de um certo vídeo. Ele não a teria conhecido se, em vez de pedir ajuda com direcções, estivesse a usar um smartphone. Não se poderiam ter igualmente apaixonado usando uma qualquer variante do Tinder, ou mesmo este serviço? Poderiam, mas não era a mesma coisa. Era, digo eu. Porque depois do primeiro olhar, da troca de palavras, a tecnologia passa de essencial a acessório.
Ficamos ainda mais perplexos por nos reconhecermos nas palavras e comportamentos de outro vídeo. O que ainda ninguém se lembrou de comentar é que, se um foi criado por um artista, o outro foi artisticamente criado por uma marca. E tal não é coincidência. Ao criar conteúdo relevante, a marca torna-se importante. Ao tocar as emoções do consumidor a marca passa a fazer parte da vida do indivíduo. É isso que todos queremos, não é? Fazer parte da vida de alguém…
(*) pessoas que preguiçosamente passam o dia sentadas no sofá a ver televisão