Marcas em Tempo de Guerra – #7 Para um futuro mais positivo

Enquanto são jovens, os macacos Wadi gostam de jogar à apanhada entre si. Um dos movimentos que mais repetem durante a brincadeira é correrem contra uma árvore e catapultarem-se numa direcção inesperada. Mais tarde, em adultos, tal acrobacia deixa de ser repetida, excepto numa situação muito específica: quando é preciso escapar a um predador. Aí a brincadeira torna-se assunto sério.

 

O caso dos Wadi — que não é único na natureza — é utilizado, recorrentemente, pelos investigadores que se dedicam ao estudo das emoções positivas para ilustrar uma ideia muito particular: a de que estas têm uma função vital no desenvolvimento humano, apesar de operarem numa escala temporal alargada e nem sempre óbvia. Tal como as brincadeiras se revelam, mais tarde, providenciais para os Wadi, também as emoções positivas, mesmo que elusivas no capítulo da causalidade, são uma parte incontestável do sucesso do ser humano enquanto espécie. São elas as grandes impulsionadoras das características que mais nos distinguem na natureza: da criatividade à imaginação, da curiosidade ao engenho. E como a selecção natural tende a preservar no código genético as vantagens evolutivas, não será forçado afirmar que, tal como tendemos a repelir tudo o que nos ameaça, somos instintivamente atraídos por tudo aquilo que nos garante e promove bem-estar.

Este é, claro, um argumento aparentemente óbvio. Mesmo dispensando a extensa introdução, a lição de biologia evolutiva e a viagem a África nela incluída, é difícil imaginar alguém a rejeitá-lo por princípio. Porém, fazê-lo vingar no seio da gestão de marca tradicional é uma acrobacia mais complicada do que caçar um macaco Wadi em pleno voo. E a razão é simples: porque apenas produz frutos já tarde na temporada, o investimento no bem-estar do consumidor é, com mais ou menos consciência, secundarizado perante qualquer estratégia que garanta resultados instantâneos e tangíveis. Se formos honestos, esta tendência é tão observável num anúncio programado para interromper um momento de lazer, como no encanto exagerado com a prontidão prometida pelas redes sociais que domina o marketing actual.

Não estou com isto a duvidar da importância, nem da necessidade, genérica das soluções que trazem retorno imediato, convém sublinhar. Estou, sim, a questionar a exclusividade que, enquanto estratégia de marca, tendem a disfrutar nas rotinas das organizações. E, neste ponto, a biologia humana volta a ser uma lição útil: tal como não teríamos chegado aqui hoje se apenas nos socorrêssemos dos recursos de reacção instantânea, também as marcas que renunciem a uma construção de longo prazo — o tal caminho positivo — deixam de parte o seu potencial mais promissor, tanto a nível humano, como económico.

Sou da opinião, como se percebe, que o investimento no bem-estar do consumidor — do pequeno detalhe ao gesto largo —, mesmo que sem regime de exclusividade, deve assumir lugar privilegiado na gestão de marca. Trata-se de uma convicção pessoal, tão humanista, quanto económica. Já dizia Leo Burnett, “o que ajuda as pessoas, ajuda o negócio”. E ainda que, pessoalmente, a tenha vindo a explorar com obstinação, parece-me que a pandemia poderá muito bem ter sido a prova de conceito que faltava.

Como já aqui sublinhei, entre a incerteza ensurdecedora e uma expectativa ansiosa, o vácuo do desconhecido levou muitas organizações a reencontrarem o seu desígnio original: o ser humano a quem se destinam. E, assim, surgiram todo o tipo de projectos e iniciativas claramente apontadas ao bem-estar do público, não propriamente às necessidades imediatas das organizações por detrás deles. De uma assentada, o potencial positivo das marcas, que tanto tenho advogado, ficou inequivocamente provado. E se ainda é cedo para falarmos em resultados económicos, para já, os dados que temos são promissores: o público aplaudiu de pé. Esse é, quanto a mim, o sinal mais claro de que o futuro das marcas terá de passar, obrigatoriamente, pela felicidade do consumidor. O fim perfeito para uma história inesperada.

Confesso, contudo, que este vislumbre de um mundo povoado por marcas positivas que agora nos foi presenteado reavivou uma reflexão pessoal que há muito alimento e que vai um pouco além desta simbiose recíproca entre a felicidade do indivíduo e o retorno económico das organizações. Diria, até, um pouco além do marketing. Se de facto as marcas, na demanda legítima pela sua saúde económica, assumirem a missão de ir ao encontro do bem-estar do consumidor como defendo, isso significará atender, de forma mais ampla, a todo o tipo de preocupações além da felicidade estritamente individual — sejam elas sociais, económicas, ambientais ou de outra natureza qualquer. Ao fazê-lo, estarão a colocar nas mãos do público uma revigorada capacidade de resolução de problemas e de pressão social, que, desde há muito, se tem vindo a diluir.

Não ignoro um certo idealismo optimista, ou pós-capitalista, nesta concepção. Mas recordemos, por exemplo, que nos últimos anos foi notável o crescimento da retórica e das soluções ambientalistas em todo o tipo de organizações comerciais. Ora, mais do que uma renovada consciência do mundo económico-corporativo, este é um indício claro de que as preocupações do público têm capacidade para influenciar a agenda das marcas e, no processo, obter resultados sociais efectivos. Isto leva-me a acreditar que, quanto mais marcas sensíveis ao bem-estar do público houver, melhores serão as ferramentas que cada um de nós terá para assumir uma cidadania activa e consequente.  

Aceito o idealismo. Diria até que, das muitas brincadeiras possíveis, esta é uma das que mais devemos insistir para tornar num assunto sério. E, por isso, com um optimismo que julgo saudável, termino esta série de textos com o mesmo desejo com que a comecei: que o regresso à normalidade não seja apenas um regresso à normalidade.

 

Tendo como cenário as atípicas circunstâncias para as quais a Covid-19 atirou o mundo, “Marcas em Tempo de Guerra” é uma série de artigos, sem guião fixo, que pretende olhar para e reflectir sobre o potencial positivo das marcas na sociedade. O título é, em jeito de homenagem, uma apropriação do título do programa “Dançar em Tempo de Guerra”, da Companhia Nacional de Bailado, também ele “vítima” circunstancial da Covid-19.

 

Outros artigos desta série:

#1 Aqui e agora

#2 Um regresso às origens

#3 Orgulho e preconceito

#4 Pontes quebradas

#5 Oportunidade digital

#6 Em nome da Cultura

 

João Campos é diretor criativo do Estúdio João Campos e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019).

 

briefing@briefing.pt

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Quarta-feira, 29 Abril 2020 10:51


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