Num momento em que os CMO (Chief Marketing Officers) demonstram um entusiasmo crescente e estão dispostos a investir milhões em Inteligência Artificial (IA) generativa, as marcas estão a descobrir uma nova forma de produzir música: rápida, barata, sem licenças, sem complicações. Soa tentador? Talvez. Mas também nos obriga a fazer a pergunta que muitos ainda evitam: e se a música usada na próxima campanha não tiver sido composta por ninguém?
Várias campanhas, nos últimos anos, mostraram que a música pode ser um ingrediente mágico quando bem utilizada. Um exemplo icónico aconteceu no início dos anos 2000, quando a Vodafone adotou “Bohemian Like You”, dos The Dandy Warhols, como banda sonora de uma das suas campanhas. A escolha tornou-se tão emblemática que catapultou a banda para palcos globais. Outro caso recente, este em Portugal, foi a campanha da Staples, intitulada “Eu vou ser o que eu quiser”. A marca convidou a artista Bárbara Tinoco para criar um tema original com videoclipe coreografado, destinado a inspirar crianças e jovens a valorizar os seus talentos. A música ajudou a reforçar a mensagem da campanha e elevou a visibilidade da artista num contexto positivo e educativo.
Esses exemplos ilustram como a escolha musical correta não só reforça mensagens emocionais como também pode elevar a campanha ao estatuto de icónica – algo que, no mundo do Marketing, é um ativo estratégico de enorme valor. Quando uma música ecoa além do anúncio, quando é cantada, partilhada, reinterpretada ou até regressa às tabelas, estamos perante algo que vai muito além do mero suporte sonoro. Estamos perante cultura viva.
É certo que trabalhar com músicos reais representa um custo superior face à aparente simplicidade da IA generativa. Mas importa perguntar: o que estamos a medir? Porque o retorno de uma criação autêntica é muito mais profundo. Envolve impacto emocional, identificação coletiva, valor cultural e até longevidade comercial. Ao contrário de uma faixa gerada em segundos por um algoritmo, a música composta por humanos tem raízes. E tudo o que tem raízes, tem capacidade de crescer.
Num contexto onde os algoritmos se tornaram criadores invisíveis, a tentação de substituir o humano pela máquina é real e crescente. A IA já é capaz de gerar músicas “originais”, adaptadas a diferentes moods, estilos ou contextos de marca. Para muitos marketeers, é uma solução eficiente, especialmente quando o tempo e o orçamento apertam. No entanto, essa eficiência esconde um risco profundo: a desvalorização da criação artística humana e a fragilização de todo um ecossistema cultural.
Quando uma marca opta por música gerada por IA em vez de uma obra composta por um autor, essa escolha não é neutra. Significa, muitas vezes, a exclusão de um criador do processo. E com isso, perdem-se receitas, oportunidades e, mais subtilmente, perdem-se vozes únicas, histórias pessoais e autenticidade. A música criada por IA não tem memórias, nem contexto, nem vivência. É uma resposta algorítmica, por mais sofisticada que seja, e isso muda radicalmente a forma como nos relacionamos com ela enquanto consumidores.
A música tem um impacto direto, comprovado, no comportamento do consumidor. Vários estudos demonstram, por exemplo, que a música ambiente em espaços comerciais influencia o tempo de permanência, o volume de compras e até as decisões de escolha. Em restaurantes, o ritmo e o género musical condicionam o consumo de bebidas ou sobremesas; em lojas, uma banda sonora alinhada com a identidade da marca reforça a coerência da experiência e aumenta a propensão à compra. Estamos, por isso, a falar de uma ferramenta com efeito direto na rentabilidade – e não apenas de um acessório sensorial.
Mas a música não é só eficácia. É também emoção, memória, identidade. E é precisamente aí que a criação humana faz toda a diferença. Trabalhar com músicos reais dá rosto às campanhas, inscreve-as num tempo e lugar, e aproxima as marcas das comunidades. Os artistas não entregam apenas melodias, entregam narrativas, camadas de sentido, envolvimento emocional. Cada nota transporta a intenção de alguém, e é isso que o público sente, mesmo sem o saber racionalizar.
A IA pode, e deve, ter um lugar neste processo – como ferramenta de apoio, como extensão da criatividade, como instrumento técnico. O que está em causa não é rejeitar a inovação, mas sim garantir que esta não apaga o essencial: a autoria. Porque uma música sem autor é também uma música sem responsabilização, sem representação, sem remuneração justa. E é aqui que o papel das entidades de gestão coletiva, como a Audiogest, se torna ainda mais relevante.
Num ecossistema em mutação acelerada, temos a responsabilidade de proteger os direitos dos autores e de garantir que as novas tecnologias servem a cultura, e não a drenam. Precisamos de regras claras, de legislação que distinga criação humana de produção algorítmica, e de mecanismos que assegurem a rotulagem transparente dos conteúdos gerados por IA. O consumidor tem o direito de saber se aquilo que ouve foi composto por uma pessoa ou por um código.
A sensibilização também passa por campanhas públicas. É o caso da campanha europeia “Stay True to the Act”, promovida pela IFPI –Federação Internacional da Indústria Fonográfica, apoiada por dezenas de artistas em todo o continente, incluindo vários nomes portugueses. Esta iniciativa apela à implementação rigorosa do EU AI Act, exigindo que a utilização de obras musicais para treinar modelos de IA respeite princípios fundamentais como o consentimento, a transparência e a proteção dos direitos de autor. A Audiogest, enquanto entidade ligada à defesa dos direitos dos produtores musicais em Portugal, subscreve estes princípios e reforça a urgência de garantir que a IA não se desenvolve à custa da integridade criativa humana.
Esta discussão não é exclusiva da música. Os meios de comunicação enfrentam desafios muito semelhantes. As redações e jornalistas deparam-se com conteúdos gerados por IA que simulam notícias, opiniões, e até investigações, sem qualquer verificação, responsabilidade ética ou contexto humano. O paralelismo é claro: quando substituímos a criação por simulação, perdemos sentido. E se perdemos sentido, perdemos confiança. A integridade da cultura, da informação e da comunicação depende de sabermos valorizar o que é feito por pessoas, com intenção, com ética e com responsabilidade.
No mundo do Marketing, onde a autenticidade se tornou uma moeda cada vez mais valiosa, talvez a maior vantagem competitiva seja continuar a contar com música que tem alma, intenção e autoria. Porque a verdadeira ligação emocional – aquela que transforma uma campanha em algo memorável – raramente nasce de um prompt de IA. E porque, no fim do dia, aquilo que mais aproxima as marcas das pessoas são as histórias que ambas partilham. E a música, enquanto expressão criativa humana, continuará a ser um dos veículos mais poderosos dessa ligação.
E o risco vai além da música. Quando normalizamos a substituição da criação humana por algoritmos em bandas sonoras, abrimos espaço para que essa lógica se estenda à própria conceção de campanhas e estratégias de marketing. Num cenário onde a criatividade é automatizada e os conceitos são gerados por máquinas, quem garante a originalidade, a visão, a diferenciação? Nesse estádio, o que está em causa não é apenas a integridade cultural, mas a própria relevância e subsistência dos profissionais de Marketing — também eles autores e criadores.
É tempo de as marcas assumirem um papel ativo na defesa da cultura e dos seus criadores. E é também tempo de repensarmos o que significa, hoje, “usar música” numa campanha. Afinal, a escolha entre um algoritmo e um autor é mais do que técnica. É uma escolha cultural, ética e, em última instância, estratégica — uma oportunidade para as marcas que quiserem liderar com criatividade, propósito e visão.
Susana Delgado, Communication & Marketing Manager da Audiogest

