Eis a questão que se coloca. Paulo Querido, editor da newsletter VamoLáVer, um projeto de cidadania informada, como define o ex-jornalista, responde à Briefing. “Mark Zuckerberg não tem nenhum interesse seja no que for relacionado com o interesse público, o bem público, a governação, as ‘raízes’, a ‘liberdade de expressão’, etc.. Se alguma vez isso tivesse estado na cabeça dele, as redes da Meta teriam uma configuração assaz diferente da que foram edificando ao longo dos anos”, começa por defender o editor.
De acordo com Paulo Querido, que recentemente apresentou os dados e conclusões de um trabalho efetuado ao longo de três meses sobre a verificação de dados produzida pelos três fact-checkers a operar em Portugal, a pretensão e o interesse do CEO norte-americano “gira em torno da gestão da Meta”, proprietária das populares plataformas digitais Facebook, Instagram e WhatsApp.
“Isso implica estar nas boas graças da administração norte-americana, seja ela qual for. Durante a campanha, o agora presidente ameaçou diretamente Zuckerberg de fazer a vida negra à Meta, se este não compactuasse com ele. Foi a isto que Zuckerberg reagiu, não a nada que tivesse a ver diretamente com o programa de verificação de factos da Meta”, acrescenta o antigo jornalista, cujo fact-checking tem estado no seu radar há anos.
Seja para compactuar ou não com a administração do 47.º presidente dos Estados Unidos, a Rede Internacional de Verificação de Factos (IFCN) alerta que a decisão de terminar com o programa de verificação de factos da Meta a nível mundial – para já em vigor só em território norte-americano – pode causar “danos reais”. Entre os mais de 100 países com um programa semelhante, alguns são “altamente vulneráveis à desinformação”, nota o organismo constituído por mais de 130 organizações.
Um receio partilhado igualmente pela Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), que chama a atenção para eventual “desinformação generalizada” e “discurso de ódio”, com o aligeiramento dos termos e condições da Meta, sobretudo no que diz respeito às questões de género, sexualidade e etnia, questões referidas igualmente pelo coordenador de Redes Sociais do Expresso, Pedro Miguel Coelho.
“No caso português, se isto acontecer, o que se prevê é termos conteúdo jornalístico nas redes sociais, no caso do Expresso no Facebook e no Instagram, e esta informação jornalística passar a conviver com outro tipo de informação que não é jornalística, mas que muitas vezes se apresenta como tal para confundir o utilizador. Uma das características mais perniciosas da informação falsa é que ela é feita de maneira a que seja o mais semelhante possível à informação verdadeira e, quanto mais parecida ela for com uma notícia legítima, mais eficaz vai ser na sua disseminação”, comenta Miguel Coelho.
Replicar o sistema do X
A alteração do programa de verificação de factos, anunciado por Zuckerberg, para um sistema idêntico ao do X, segundo o coordenador de Redes Sociais do Expresso, dificilmente será eficaz na deteção de informação falsa. “Aquilo que nós verificamos da nossa experiência no Twitter é que até a nota de a comunidade ser aprovada e estar visível para os utilizadores, já a informação falsa deu duas voltas ao mundo. E esta vai ter uma consequência para o trabalho jornalístico, que já acontece e vai agravar quando forem retirados os mecanismos de fact-checking”, sublinha, manifestando o desejo que, “no caso da União Europeia, as instâncias que regulam os media e as redes sociais não permitam que aconteça este afrouxamento das medidas que garantem a qualidade e a veracidade da informação”.
Além de a medida colocar em risco a manutenção das empresas e os trabalhadores que viviam da compra do serviço de verificação da Meta, Paulo Querido diz que não antevê maiores problemas. “A razão é simples. O programa de verificação de factos da Meta foi sempre uma ação de relações públicas. O único objetivo do programa era ter o que se chama ‘boa imprensa’, para poder usar no marketing e nas relações comerciais. À exceção da imagem boazinha da Meta e do seu fundador, principal acionista, presidente e CEO – uma acumulação estranha, mesmo no país dos oligarcas –, e os salários dos verificadores, o fact-checking não produziu nenhum retorno visível ou mensurável nos espaços públicos, seja no americano, seja no europeu”, garante, avançando que os “os fact-checkers limitavam-se a entregar as peças à Meta, que fez com elas o que entendeu e nunca disso prestou contas, nem tinha que prestar, nem a quem prestar.”
Ferramentas de IA podem ser um aliado
Apesar de Paulo Querido defender que a “publicação das peças nos sites dos jornais e das empresas criadas para o efeito não produziu impactos públicos”, Pedro Miguel Coelho gostava de ver um investimento maior no desenvolvimento de ferramentas mais eficazes na deteção de informação falsa e que possam travar a rápida disseminação, como aconteceu recentemente nos incêndios na Califórnia e sucede frequentemente na sequência de catástrofes naturais.
“Pela primeira vez, aconteceu termos vídeos integralmente produzidos por Inteligência Artificial (IA) que foram divulgados como sendo reais. Por exemplo, um dos mais partilhados foi um vídeo que mostrava as letras que dizem Hollywood a arder e esse vídeo era falso”, aponta o coordenador das redes sociais do semanário.
Para fazer face a este “fenómeno crescente” e ao “problema da velocidade da propagação da informação, às vezes não há mãos humanas que consigam acompanhar”, Pedro Miguel Coelho acredita que a solução poderá passar pela criação de ferramentas de IA.
“À medida que a IA generativa está a avançar a uma velocidade louca, é cada vez mais difícil distinguir ao olho humano um vídeo falso e um vídeo verdadeiro. Depois há as questões de literacia digital, ou seja, há utilizadores mais preparados e menos preparados para fazer esta distinção e, é aí, que as plataformas não deviam desresponsabilizar-se, pelo contrário. Só que neste momento o que existe é um lucro por parte das plataformas com a utilização do conteúdo falso”, explica, acrescentando ser objetivo de as plataformas reterem os utilizadores o máximo tempo possível, por forma a rentabilizar os anúncios pagos e gerar maior receita.
“Portanto, não existindo o incentivo por parte dos Estados e da lei para que cumpram estas regras, as plataformas vão aproveitar-se disso, porque o conteúdo falso, muitas vezes, até gera muito mais interações e circulação nas páginas das redes sociais do que o conteúdo verdadeiro. A verdade é que as redes sociais estão incentivadas financeiramente, economicamente, a não fazer moderação de conteúdos, porque isso não vai beneficiar as receitas”, advoga, referindo existir por parte dos “publishers” disponibilidade para trabalhar com a Meta. “Isso já aconteceu N vezes no passado. Depois abandonaram essa área, à medida que perceberam que não precisavam de jornalistas, nem de Jornalismo, para ganhar dinheiro e que beneficiavam um bocadinho desta confusão. Mas a verdade é que em situações anteriores já houve colaborações bem-sucedidas, agora também é preciso dar à Meta os incentivos e aí tem de ser a legislação a entrar em ação para que cumpram a lei”, remata Pedro Miguel Coelho.
A decisão da Meta acabar com a verificação de factos, feita por órgãos de comunicação social e plataformas independentes desde 2016, está em vigor desde o início do ano nos Estados Unidos, mas para ser colocada em prática na União Europeia, a empresa liderada por Mark Zuckerberg terá de apresentar uma avaliação de risco à Comissão Europeia para determinar se está ou não de acordo com a legislação comunitária sobre serviços digitais.
Sofia Ramos Silva