O que realmente se passa dentro das salas dos júris em Cannes?

O que realmente se passa dentro das salas dos júris em Cannes?Mais um ano que se passou, mais um ano de vitórias e derrotas, concordâncias e discordâncias. E também, mais um ano de pressões, jogos políticos, manobras de bastidores, favores e jeitinhos.

Foi mais um ano em que se ouviram histórias do arco da velha sobre o surreal que é ser jurado no Festival Internacional de Publicidade, os Cannes Lions. Tenho a honra de trabalhar, tanto agora como no passado, com muitos profissionais que tiveram a felicidade de passar uma semana em Cannes à borlix. E conheço muitos outros que experienciaram, ou dizem terem conhecimento de, algumas das tropelias que relato.

 

E antes de começar com o que se passa lá dentro, uma nota para a escolha dos júris. Cada país tem o seu representante oficial de Cannes e sāo estes os responsáveis pela nomeação dos jurados para o festival. Este ano, segundo me constou, quase metade deles nem sabiam o que tinham de fazer nem por que estavam ali…

Mas vamos lá.

As pressões das multinacionais – muitas agências e networks puxam a brasa à sua sardinha e inundam os telemóveis dos jurados com mensagens e chamadas aquando do judging propriamente dito. Já não basta os dias serem longos, como ainda têm de atender chefes, amigos, CEO, clientes e até familiares sob pena de repercussões de todos os níveis.

 

A própria escolha e/ou votação da shortlist – Os jurados têm, na maior parte das categorias, de percorrer cerca de 3 mil trabalhos. Estamos a falar de cerca de 3 mil case studies x 2 minutos cada em média, o que dá 6000 minutos ou, como muitos já terão feito a conta, 100 horas. Ou ainda mais claro, pouco mais de 4 dias de case studies. Como isto não é uma forma muito efectiva de se achar uma shortlist, o corpo de jurados de uma categoria é dividido em vários grupos e é dada a cada um destes grupos apenas uma parte das campanhas a concurso. Ou, por outras palavras, um corpo de júri não tem contacto com todas as entradas a concurso. E pior ainda, ou se agarra o júri logo nos primeiros 20 segundos do case study ou passam à frente num tirinho. E este é o primeiro dia. Depois sim, há uma shortlist e ‘bora’ lá ver a coisa com calma.

 

O “problema” do Brasil – Que o Brasil é rei do projecto-fantasma não é novidade. Este ano até foi vexado publicamente e obrigado a devolver um leão. Que todo o Brasil se junta para se fazer valer também não. Para os mais incautos, quantos mais leões um país ganha, mais jurados desse mesmo país terão assento no ano seguinte no festival. Há muitos anos que o Brasil premeia-se a si próprio, com conhecidíssimas trocas de emails de directores criativos executivos, MD e CEO que combinam o que premiar e apelam ao voto patriota. Mas este ano tive conhecimento de uma história rocambolesca: um ex-director criativo brasileiro de uma agência não-brasileira quis o seu nome nos créditos de um projecto conhecidíssimo e que provavelmente iria ser galardoado. Mas, na verdade, apenas respirou o mesmo ar que os criativos na mesma sala e a resposta da CEO foi “evidente que não”. Ao que ele retorquiu (rufo de tambores): “Ou me colocam na lista ou todos os meus amigos brasileiros jurados vetam esse projecto”. Pumba. Não só a campanha foi distinguida, como o dito cujo foi ao palco receber o Leão de Ouro. Tudo isto seria surreal. Mas o que mais surpreende no meio disto tudo é que o Brasil é de facto dos melhores países em criatividade publicitária. Para quê tudo isto?

 

E muitas outras situações. Enfim. Não é de admirar que o Amir Kassaei, da DDB, se tenha cortado de Cannes este ano e Sir Martin Sorrell já avisou que TODAS as agências da WPP nāo entrarão no festival no próximo ano se algo não for feito para travar os scams.

 

Mas em suma, quando o trabalho é bom é bom e será naturalmente premiado. Quando é uma merda, é preciso ter um bolso bem fundo e a coragem de usar as armas certas nos alvos certos e estar de consciência tranquila que isso poderá destruir reputações.

 

Ou simplesmente ficar quietinho e trabalhar melhor no ano seguinte. Porque afinal todo o criativo irá ganhar um Leão na sua carreira. Os bons e dedicados recebem-no várias vezes, muitas vezes no mesmo ano. E os melhores fazem-no ano após ano.

Quarta-feira, 06 Julho 2016 09:17


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