Os temas que o seu ministério tutela enfrentam desafios vários por via da Agenda 2030 da Comissão Europeia. Um deles é o da transição digital. Do ponto de vista das empresas e da gestão do trabalho e das pessoas, que desafios identifica?
Os últimos anos mostraram que aquilo que antecipávamos que iria acontecer de repente se transformou numa realidade. Ficou evidente que a transformação digital está mesmo a acontecer, o que pode trazer, por um lado, o risco de agravamento das desigualdades, mas, por outro, oportunidades.
A pandemia acelerou aquilo que as projeções apontavam para daqui a alguns anos – cerca de 20% dos postos de trabalho obsoletos ou 70% ser alvo de modificações substantivas. Por outro lado, veio mostrar que há muitos postos de trabalho que na sua configuração atual provavelmente desaparecerão, mas a verdade é que as projeções também apontam para cerca de 90 milhões de novos postos de trabalho que vão surgir associados a novas profissões, a novas realidades económicas, até relacionadas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente os ambientais.
É evidente para todos nós que temos de adaptar os nossos comportamentos e a sociedade a estes objetivos, por razões de sustentabilidade do planeta e também por via da evolução tecnológica e digital.
São desafios que, como disse há pouco, implicam o risco de agravamento das desigualdades, pelo que temos de ver como é que, em termos de mercado de trabalho e de capacitação da sociedade, garantimos que este crescimento se faz de forma inclusiva. Temos de acautelar esse risco.
Mas, por outro lado, há o que estas novas realidades podem trazer como fontes de promoção da igualdade. Dou um exemplo concreto das novas formas de trabalho que mostram que se pode trabalhar de qualquer sítio para qualquer sítio: de repente, abre-se para qualquer pessoa que esteja em Portugal um mundo de oportunidades.
E saber aproveitar estas oportunidades é um grande desafio que este ministério tem, no sentido de ser o motor, de criar linhas de resposta: como é que damos competências às pessoas para que façam parte deste crescimento; como é que garantimos que fazemos o match de uma forma muito rápida e eficaz entre as necessidades reais do mercado e as necessidades das pessoas, mas também o match da formação; e como é que temos capacidade de, socialmente, promover esta reconversão massiva dos trabalhadores para áreas emergentes.
São três áreas de intervenção muito fortes e foi o que assumimos no Compromisso Social do Porto [durante a Presidência Portuguesa da União Europeia, em maio de 2021]: garantirmos que, até 2030, pelo menos 60% da população ativa tem, por ano, ações de formação e reconversão para as competências que o mercado exige e valoriza.
Qual é o papel do Estado, em articulação com as empresas, no acautelar dos postos de trabalho e no travar do risco de desemprego das pessoas em funções obsoletas?
Falando na ótica do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, temos dois papeis essencialmente. Em primeiro lugar, servir de ponte entre as necessidades das empresas e as necessidades das pessoas. Em 2021, assinámos, com os parceiros, em sede de Concertação Social, um acordo estratégico de formação, que identifica exatamente o que temos de fazer.
Em segundo lugar, ser motor de aceleração. Procurámos fazer o levantamento, em conjunto com as associações empresariais, das necessidades de competências e de capacitação para desenharmos, à medida, programas de formação. Criámos o Upskill, o programa que fará a diferença no modelo de formação e na forma como olhamos para a capacitação das pessoas como motor crítico da competitividade das empresas. É um compromisso tripartido entre, por um lado, o IEFP e o ensino superior, por outro, as empresas tecnológicas, e, por outro ainda, os trabalhadores- As empresas definiram um conjunto de competências de que o mercado precisa, o IEFP e o ensino superior desenharam um curso à medida destas necessidades, em contexto de academia e em contexto de prática. Há, logo à partida, o compromisso de estas empresas absorverem 80% das pessoas que fazem parte da formação, e com contrato permanente e salário definido no momento em que entram para o programa. Logo, há garantia de empregabilidade e de valorização das competências. Começámos em plena pandemia, o que foi arriscado, mas é um modelo para o futuro. Todos percebem que estão a ganhar.
O perfil dos trabalhadores e o que esperam das empresas também mudou. Há também aqui um match a fazer?
Mais uma vez, a pandemia acelerou uma transição do ponto de vista das expectativas dos trabalhadores, daquilo que esperam que o trabalho lhes dê na vida. É, aliás, um dos grandes desafios que as organizações têm: como se adaptam para conseguir atrair e reter talento. É evidente que, cada vez mais, as pessoas procuram organizações com as quais se identificam, em que há um maior nível de participação ativa dos trabalhadores na decisão e em que se reveem no impacto da sua contribuição. O trabalho é apenas uma das peças do puzzle da sua vida e deve ter a capacidade de lhes dar este espaço de conciliação entre as dimensões pessoal, familiar e profissional.
Qual é o desafio para trabalharmos em conjunto? O acordo de rendimentos e competitividade, que estamos a negociar em sede de Concertação Social, é importante, porque, mais uma vez, junta as peças do que pode ser o contributo dos trabalhadores, das organizações e do Estado, nomeadamente sob o ponto de vista da valorização dos salários – é crítico para conseguir atrair e reter talento. Mas também do ponto de vista da capacidade das organizações de transmitirem aos trabalhadores a sustentabilidade da sua relação, numa lógica da organização que acredita no trabalhador e não está permanentemente com contrários precários.
Faço aqui um parêntesis: hoje em dia, qualquer jovem da Europa pode trabalhar em qualquer sítio devido à liberdade de circulação de pessoas, independentemente de onde nasceu. Por isso, é crítico posicionar Portugal como um bom destino para trabalhar, seja pela capacidade de um emprego de qualidade, seja pela qualidade de vida que oferece.
A este propósito, lembro um inquérito feito, este ano, a trabalhadores em toda a Europa, em que se lhes perguntava por que razão tinham um contrato não permanente, se era ou não por sua vontade. E é bastante impactante olharmos para os resultados: em Portugal, 85% dos inquiridos dizia que tinham um contrato precário porque o mercado de trabalho não oferecia um permanente; 50% na média Europa, e 15% na Alemanha. Se os nossos jovens trabalham no mercado europeu, a verdade é que podem escolher, pelo que temos de lhes dar um sinal claro. É o que estamos a fazer com a Agenda de Trabalho Digno, que já apresentámos à Assembleia da República.
Os modelos de trabalho sofreram quase uma revolução com a pandemia. Foi pontual ou o trabalho remoto e o híbrido vieram para ficar?
Vieram completamente para ficar, naturalmente não com a intensidade que tivemos durante a pandemia. O facto de as pessoas terem de ficar em casa para se protegerem umas às outras levou a uma mudança de paradigma. De repente, mudou a perceção das organizações e das empresas de que estes novos modelos têm vantagens, mas também desvantagens. Mas, o facto de terem sido testados no extremo permitiu encontrar soluções de compromisso, com equilíbrio, em que as organizações e as pessoas veem vantagem em ter partes da sua relação em teletrabalho, mas também a necessidade da presença em alguns momentos.
Há a preocupação de encontramos formas de enquadrar e regular estas novas formas de trabalho. Mais uma vez, foi o que procuramos na Agenda do Trabalho Digno, procurando que a lei defina o que considera que são os requisitos mínimos que devem estar salvaguardados para proteção do trabalhador. Numa relação de trabalho, é uma das partes que precisa de alguma proteção do ponto de vista do interesse público e, naturalmente, há grande preocupação de incentivar que as soluções sejam encontradas com diálogo social, ao nível setorial, em vez de regras de régua e esquadro que não são aplicáveis a todas as situações.
O que é que isso implica? Conseguirmos ter um diálogo social mais ativo, uma negociação coletiva mais ativa, ter os trabalhadores a participarem mais nas decisões, mesmo a nível sindical. É um grande desafio que enfrentamos e, por isso, na Agenda do Trabalho Digno procurámos alargar a parte da negociação e a representação dos trabalhadores. E o Acordo de Rendimentos e Competitividade também contribui para este diálogo social mais forte, com compromisso.
Mas também dando alguns sinais. Por exemplo, que, no acesso a instrumentos de financiamento comunitários, a existência ou não de contratação coletiva e de diálogo social dinâmico seja um dos ponderadores, procurando que as políticas públicas induzam a que isto aconteça. No apoio às empresas para a evolução do salário mínimo em 2022, o que fizemos foi um ponderador diferente para as que têm contratação coletiva dinâmica. Foi um princípio, mas um princípio importante, porque a verdade é que tivemos um aumento do número de trabalhadores abrangidos pela contratação coletiva.
É um sinal que estamos a dar de que os trabalhadores têm de participar ativamente nas decisões e no desenvolvimento das empresas.
A agenda da Comissão Europeia é também verde. E as organizações regem-se pelo framework ESG, sendo o pilar Social o abrangido pelo ministério que tutela. Que importância lhe atribui na estratégia das empresas?
Acho que é mesmo o pilar essencial. Não é por acaso que este ministério se chama do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social. Com esta preocupação de o trabalho ser um dos elementos de toda a sociedade, mas sempre com o princípio de, cada vez mais, as organizações serem instrumentos em que as pessoas acreditam no que toca à sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade. Os trabalhadores querem sentir que fazem parte de um crescimento inclusivo, que tem impacto na vida das pessoas e que respeita na íntegra aqueles que são os ODS. O pilar Social é isso, é garantir que o desenvolvimento e o crescimento são feitos de uma forma inclusiva, seja na dimensão ambiental, seja no combate às desigualdades, seja na capacidade de o trabalho ser verdadeiramente uma forma de inclusão na sociedade.
Dou-lhe um exemplo concreto do que conseguimos na Cimeira Social do Porto. A grande conquista foi, pela primeira vez, termos no mesmo palco os parceiros sociais europeus a assinar um compromisso conjunto e a dizer que na base da recuperação económica devia estar a dimensão social – a igualdade de homens e mulheres no mercado de trabalho, a igualdade de aceso à formação, o trazer para o mercado de trabalho todas as pessoas independentemente das suas qualificações, uma grande preocupação de inclusão das pessoas com deficiência. Em suma, garantia de diversidade. Não é por acaso que as empresas gostam de se posicionar mostrando a diversidade na composição dos trabalhadores até como fator chave de afirmação do mercado a que se dirigem, porque também é o consumidor que exige, o pilar Social faz parte dos critérios de escolha das empresas com que se quer relacionar.
É mesmo um imperativo, já não é uma opção. Temos de garantir que não fica ninguém de fora e que há mesmo um crescimento inclusivo.