Quer seja por imposição da União Europeia, quer seja pela necessidade de prestar contas à estrutura acionista, o sustainable procurement tem de entrar no léxico das empresas, sob pena de afetar toda a cadeia de valor. Esta é uma das visões partilhadas por Joaquim Oliveira, Supply Chain & Network Operations Partner na Deloitte Portugal, numa entrevista em que identifica as tendências que estão a moldar a cadeia de abastecimento, da tecnologia à sustentabilidade.
2050.Briefing | Em que medida é que a supply chain é determinante na estratégia de uma empresa, logo, determinante para a competitividade e o sucesso do negócio?
Joaquim Oliveira | Desde a situação pandémica em que vivemos e, mais recentemente, com a situação geopolítica decorrente da guerra na Ucrânia e com o conflito israelo-palestiniano, que a supply chain se tem vindo a transformar, evoluindo de um centro de custo para um centro de criação de valor. No passado, as organizações estavam mais focadas no produto e em ter cadeias de abastecimento eficientes, muito orientadas ao custo, mas, hoje em dia, o paradigma é completamente diferente, com o foco no consumidor. E, para isso, é preciso ter agilidade, é preciso ter capacidade de resposta.
Fruto destas alterações do contexto externo, as organizações evoluíram muito. E evoluíram para cadeias de abastecimento como fonte de vantagem competitiva, que permite antecipar padrões de procura, antecipar alterações de produção, antecipar a troca de fornecedores. Sem dúvida que a supply chain é um fator de competitividade e de diferenciação das empresas. E uma das formas de diferenciação é exatamente o facto de estar orientada para o consumidor, isto é, de ser customer centric.
Nessa evolução de custo para valor, é possível identificar os principais fatores que estão a determinar a mudança?
Claro que sim. Há um fator fundamental que é a digitalização, isto é, a introdução de tecnologia e de soluções digitais que conferem maior visibilidade, maior agilidade à própria cadeia de abastecimento. O que nos leva a outra característica da própria cadeia: é que cada vez mais são cadeias autónomas em que a interferência humana é sobretudo na gestão de exceções e não na gestão daquilo que é o padrão normal. Depois, como referi, são cadeias de abastecimento cada vez mais orientadas para o consumidor, sendo que o consumidor evoluiu significativamente no seu padrão de compra, uma compra cada vez mais online, em que se querem entregas no próprio dia.
Não esquecendo o tema da sustentabilidade. Há uns anos, não estava tão presente na cadeia de abastecimento, mas hoje há uma preocupação acrescida com os padrões de ética, de circularidade na utilização dos materiais, com a eletrificação das frotas como forma de reduzir as emissões de gases, por exemplo. Estas características vão ser muito evidentes no futuro.
É possível identificar setores da economia ou do tecido empresarial em que esta necessidade de transformação seja mais crítica e em que, caso não consigam dar resposta, as empresas poderão ver a sua competitividade ameaçada?
Sim, esta evolução está muito mais patente em empresas de grande consumo, mas também no setor farmacêutico e de ciências da vida e, mais recentemente, no de manufactoring ou industrial products. São setores cujas cadeias de abastecimento são mais longas e mais complexas. Temos vindo a dar suporte a vários clientes em vários setores de atividade e, de facto, estas transformações são complexas e envolvem uma nova forma de trabalhar, com soluções tecnológicas que visam acelerar todo o processo.
Que modelos estão a emergir na supply chain para dar resposta ao imperativo da digitalização, que identificou como uma das tendências?
A digitalização tem um papel fundamental na transformação da cadeia de abastecimento. No passado, tínhamos uma cadeia muito mais linear e, quando digo linear, refiro-me ao planeamento de produto, ao fornecimento das matérias-primas, à própria fabricação, à distribuição e, depois, todo o suporte ao cliente. Mas, hoje em dia, temos uma cadeia completamente conectada, em que é preciso perceber as necessidades do cliente, ter a capacidade de conectar essas necessidades com a rede de fornecedores, ter a capacidade de monitorizar, em tempo real, a dinâmica de abastecimento da própria cadeia. E há a introdução de tecnologias associadas a soluções de smart factory, isto é, fábricas inteligentes com a possibilidade de recolher dados. Todos estes aspetos têm de estar balanceados e interconectados. São peças interconectadas com tecnologia.
Os exemplos que dão referem-se a grandes grupos. Mas, quais são os desafios para o tecido empresarial português, que é constituído maioritariamente por pequenas e médias empresas para as quais a sustentabilidade pode constituir, ao início, um custo?
É verdade que estes investimentos acarretam investimento em tecnologia para capturar toda a informação que existe no ecossistema da cadeia de abastecimento. Não sei se será mais desafiante, mas, numa primeira etapa, já estamos a assistir no mercado nacional a que as empresas, independentemente da sua dimensão, começam a ter uma preocupação crescente com a sustentabilidade, com o sustainable procurement, ou seja, em identificar nos seus fornecedores padrões que sejam sustentáveis ou, pelo menos, ajudá-los a desenvolver práticas de sustentabilidade ambiental, de governance e de responsabilidade social. Portanto, estas iniciativas já acontecem e terá de haver, cada vez mais, colaboração das grandes empresas com as pequenas e médias empresas na evolução deste tipo de soluções com vista à sustentabilidade na cadeia de abastecimento.
Mesmo no domínio da sustentabilidade, há necessidade de perfis específicos?
Sim, muitas vezes obriga a reconverter ou a formar novo talento nas organizações, e obriga também a fazer um shift na própria organização. No passado, se calhar, a sustentabilidade era vista como um aspeto secundário, mas, hoje, está na ordem do dia e implica que as organizações tenham estruturas dedicadas, porque, com a regulamentação, vai haver necessidade de reporting e não é num estalar de dedos que se consegue ter este tipo de competências. As organizações vão ter de estar, obrigatoriamente, preparadas para esta alteração de contexto. Na cadeia de abastecimento, se uma empresa não cumprir determinados standards de sustentabilidade, pode deixar de ser fornecedora, o que tem impactos diretos no desenvolvimento económico. Estamos a falar de reporting a nível comunitário, mas não só, porque as próprias organizações têm os seus modelos de reporting para as estruturas acionistas, os quais são, muitas vezes, mais ambiciosos do que a regulamentação. É uma imposição que vai ficar cada vez mais acentuada num futuro próximo.
Embora as cadeias de abastecimento tendam a ser globais, é possível olhar para o mercado nacional e caracterizar o caminho que está a ser feito?
Sim, as organizações com as quais temos vindo a trabalhar, sobretudo nos setores de grande consumo e retalho, têm cada vez mais esta preocupação de introdução da sustentabilidade e da qualidade nos seus processos. Ter estes controlos ao nível de toda a cadeia de abastecimento é crucial e começa logo na relação com os fornecedores. O conceito de sustainable procurement está na ordem do dia em todas as organizações em Portugal.
Esta entrevista pode ser lida na íntegra na edição de dezembro de 2023 da 2050.Briefing.